O verdadeiro desobediente: a história do antifascista Leone Ginzburg
Autor italiano Antonio Scurati fala sobre biografia de intelectual que se recusou a jurar fidelidade ao regime de Benito Mussolini e foi perseguido até a morte

Leone Ginzburg (1909-1944) foi uma figura central na cultura italiana do século XX. Nascido na Ucrânia e naturalizado italiano, Ginzburg destacou-se como escritor, ensaísta, editor e ativista político. Mas sua trajetória acabou marcada principalmente pela oposição ao regime fascista de Benito Mussolini, o que o levou à prisão, ao exílio e, por fim, à morte. Em A Melhor Época de Nossa Vida (Mundaréu), o italiano Antonio Scurati reconstrói a trajetória do intelectual antifascista entrelaçando as histórias de três famílias — os Ginzburg, Ferrieri e Scurati.
No Brasil, Scurati é conhecido principalmente pela tetralogia M., que retrata a ascensão de Mussolini — a publicação é da editora Intrínseca. O primeiro volume, M. O Filho do Século, foi laureado com o prestigiado Prêmio Strega em 2019, consolidando sua posição como um dos maiores escritores italianos da atualidade. A série, que inclui ainda M. O homem da providência, chega ao terceiro volume, M. Os últimos dias da Europa, em abril. O derradeiro, M. L’Ora del destino, foi lançado no fim do ano passado na Itália.

Antes, em março, a Globo Livros lança Fascismo e Populismo: Manifesto por um novo antifascismo, no qual Scurati oferece uma breve e certeira análise das origens, características e transformações dessas ideologias ao longo da história. Baseado em um discurso proferido pelo autor em um encontro da ONU, o livro traça um paralelo entre o contexto histórico desses movimentos e as estratégias políticas contemporâneas.
Scurati é colunista do jornal Corriere della Sera e professor de Literatura Comparada e Escrita Criativa na Universidade IULM de Milão. A seguir, ele responde a perguntas sobre A Melhor Época de Nossa Vida, Ginzburg e a importância de se aprender a história, justamente para não repeti-la.

O que o inspirou a escrever sobre Leone Ginzburg e a Resistência? Pertenço à geração das “últimas crianças do século passado”, as últimas que também receberam uma educação e formação intelectual totalmente antifascistas. Quando eu era menino, sonhava em me tornar escritor, sonhava em escrever um romance sobre guerrilheiros, sobre antifascistas, certamente não sobre [Benito] Mussolini e fascistas, como fiz mais tarde, depois de ler meu romance dedicado ao antifascismo de Leone Ginzburg (e ao antifascismo mais modesto, humilde e existencial dos meus avós). Decidi que meu “herói” antifascista seria Ginzburg quando a carta com a qual ele, um jovem professor universitário, havia renunciado cem anos antes para não ter que jurar fidelidade ao regime fascista foi acidentalmente encontrada.
Será que seu livro poderia ser chamado de ensaio em vez de romance? Não, eu não diria isso. É uma obra de romance narrativo não ficcional que busca uma forma inovadora de romance que defino como “romance documental” e que então encontrei em sua completude com a saga de M.
Como sua experiência pessoal influenciou a escrita deste romance? Eu não diria isso de forma alguma. A premissa desse tipo de rememoração literária da história é justamente não ter vivido, não ter tido nenhuma conexão vivencial e pessoal com o passado histórico que é narrado, mesmo que seja próxima e decisiva para aqueles que, como eu, vieram imediatamente depois daqueles acontecimentos. É uma tentativa de redescobrir o sentido perdido da história, de consertar o tecido temporal que nosso esquecimento e nossa vivência em um presente eterno rasgaram.

Como você pesquisou e integrou eventos históricos reais à narrativa do livro? Para Leone Ginzburg, a figura histórica, confiei exclusivamente em documentos (evitei deliberadamente recorrer a fontes testemunhais, à “linhagem” dos descendentes), quanto aos meus parentes, pelo contrário, confiei exclusivamente nas memórias pessoais e familiares, no que sobrevive na memória individual de uma história familiar privada, nunca inscrita na “grande” história coletiva.
Qual é o papel da memória histórica em seu trabalho e neste romance em particular? Acredito na literatura como forma de conhecimento e no romance como uma forma de literatura democrática, destinada a todos. O romance documental, rigorosamente baseado na reconstrução histórica científica, pode e deve dar uma contribuição fundamental a uma forma de memória civil, isto é, apartidária, não agressiva, não ideológica, não identitária, uma memória que, para além dos acontecimentos pessoais, permita a coexistência pacífica com os outros.
Como você acha que o tema da resistência se relaciona com os desafios contemporâneos que enfrentamos hoje em todo o mundo? O legado moral, histórico, cultural e espiritual da Resistência antifascista é literalmente fundamental para enfrentar as novas ameaças que hoje pairam sobre a democracia liberal.