O encolhimento da economia atingiu mais o emprego para o sexo feminino
É um risco de um retrocesso em avanços históricos. Mas há esperança na retomada
CAMILA COSTA
CEO da agência iDTBWA
“Quando começou a quarentena, quis assumir sozinha diversas atividades da casa, pois achei que seria meu papel. Logo fiquei estafada. Um dia, houve um problema com meu cachorro, mas eu e meu marido estávamos em reuniões virtuais e demoramos a acalmá-lo. Com o episódio, conversamos e dividimos as tarefas. Combinamos que não teríamos atividades importantes do trabalho ao mesmo tempo, assim alguém sempre estaria disponível para emergências.”
Depois de seis meses do início da pandemia mundial do novo coronavírus, quatro meses depois de ela ter desembarcado no Brasil, já é possível enxergar quem mais saiu perdendo na brusca interrupção da atividade econômica, com as pessoas confinadas dentro de casa. Direto ao ponto: as mulheres estão sendo muito mais atingidas do que os homens. Sim, ressalve-se que a Covid-19 mata mais cidadãos do sexo masculino (58,5%) do que do feminino (41,5%). Mas na lida do cotidiano elas sofrem mais prejuízos do que eles, no aqui e agora, e muito possivelmente continuarão a pagar preço alto na retomada. Em todo o mundo, entre as mulheres empregadas, 40% delas ocupam postos de trabalho nas áreas que mais perderam vagas durante a quarentena – varejo, hotelaria, alimentação. O porcentual de homens que tiram o sustento em cargos nessas categorias de risco é de 36,6%. A diferença parece estatisticamente pequena, mas entrega resultados claríssimos no Brasil: 7 milhões entre elas abandonaram a profissão ou a busca por recolocação profissional; entre eles, foram 5 milhões (veja o quadro ao lado). No universo da informalidade, atingido de modo ainda mais duro, o quadro é pior: o bloco feminino é de 42%, e o masculino, de 32%. Ou seja: há mais mulheres, com ou sem carteira assinada, onde ocorreram mais perdas.
Dentro de casa, como sempre, salvo louváveis exceções, deu-se o desencontro habitual: um levantamento feito pela recrutadora Talenses, mostrou que, na labuta doméstica, 19% das mulheres abandonaram projetos pessoais — os homens, 12%. Um passeio pelo mundo é sempre bom exercício para demonstrar a universalidade da questão: entre os americanos, a taxa de ocupação feminina caiu ao menor patamar desde 2008, ano da crise financeira global: está agora em 49,18% (em 2010, com a aceleração econômica, especialmente nos Estados Unidos, deu-se até uma histórica inversão, com mais mulheres do que homens empregados).
Não há dúvida, os danos provocados pelo surto devem ser lamentados por todos — e as saídas, buscadas de modo equânime, independentemente do gênero, com a esperança de reinício firme. Mas um olhar ao cotidiano mais comezinho é tradução fiel do que de fato ocorre. “Há um grande grupo de mulheres em serviços como salão de beleza, massagem e limpeza que não tiveram a possibilidade de trabalhar a distância durante este período”, diz Regina Madalozzo, professora do Insper, de São Paulo. “Para elas a perda foi gigantesca”. E acelerou uma toada que, nos três primeiros meses de 2020, tinha se revelado evidente no Brasil, ainda que em anos recentes houvesse algum reajuste: o desemprego feminino chegou a 14,5%, ante 10,4% do masculino, a maior discrepância desde pelo menos 2017. Em diversos casos, a pandemia interrompeu planos de quem almejava cargos de liderança e novos horizontes profissionais. “Durante o período de quarentena, a busca de mulheres pedindo orientações e dicas de como se recolocar no mercado cresceu 60%”, diz Viviane Duarte, CEO do Plano Feminino, consultoria para agências de publicidade e empresas com atenção especial para a diversidade. “Muitas relataram estar batalhando para crescer na carreira, outras tinham empregos temporários e estavam em processo de negociação com a empresa.” E, então, houve a freada.
CLAUDIA BORGES
Maquiadora
“Fui demitida da loja de maquiagens em que eu trabalhava no começo deste mês por causa da crise. Tive muito medo de que isso acontecesse logo que começou o isolamento, acho que já esperava, mas fui pega de surpresa. Estou tentando me recolocar no mercado desde agora, mas tem sido difícil, pois todos os lugares estão funcionando com menos vendedoras para manter o distanciamento social. Espero voltar ao trabalho em no máximo cinco meses, quando acabam minhas reservas.”
Existe, ainda, um aspecto comportamental, uma barreira cotidiana impregnada no mundo corporativo, apesar das mudanças crescentes: as mães, na comparação com os pais, costumam estar em desvantagem competitiva. Um estudo recente realizado no Reino Unido agora no esquisito ano de 2020 mostrou que as mulheres com filhos têm 23% mais possibilidade de perder emprego (temporária ou permanentemente) do que os homens. E no conforto, ou no desconforto, do lar suam. Não há dúvida, embora ainda não existam levantamentos precisos: as mulheres em home office estão mais atarefadas e tem menor produtividade na comparação com o sexo oposto. Façamos um teste: um filho pequeno que invade a videoconferência do pai é quase sempre tratado com candura — “olha que fofinho”. Se a invasão acontece na tela da mãe, há muxoxos contra quem não conseguiu separar adequadamente as atividades, a de casa e a do escritório. “Quase todos os casos de readequação da escala de trabalho durante a pandemia foram pedidos por mulheres, seja para ajudar no cuidado dos filhos, seja para preparar um almoço”, diz a CEO da agência de inteligência digital iDTBWA, Camila Costa, que precisou repensar a própria rotina (leia o relato de Camila na pág. 65).
E qual será, ao fim e ao cabo de todo o drama atual, o resultado desse descompasso? A Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou, em relatório divulgado em junho, um risco: o de as mulheres retrocederem na conquista de espaço no mercado de trabalho. No limite, haveria uma volta aos anos 1950, antes da revolução sexual, antes de todos os movimentos por igualdade. Há longos setenta anos, as famílias organizavam-se majoritariamente em torno de um cuidador (ela) responsável por manter o lar em funcionamento e outro (ele, o provedor) em atividade remunerada para pagar as contas. Ainda que essa realidade soe totalmente superada, e é, cabe ressaltar que a realidade dentro das casas, especialmente as mais pobres, é outra. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelam que, mesmo com empregos assalariados, as mulheres brasileiras dedicam oito horas a mais que os homens aos afazeres domésticos. “A discrepância é fruto de uma cultura que por anos diminuiu a relevância e o papel da mulher”, diz a professora de gestão de pessoas na Fundação Getulio Vargas, Vanessa Cepellos. “Houve progresso, mas é preciso seguir em frente”. O novo coronavírus impôs um obstáculo e, se não fizer com que as conquistas recuem no tempo, é certo que levará a algum atraso. Diz Rodrigo Vianna diretor da Talenses: “Entenderemos melhor a resposta a esse período daqui a dois anos, mas o mercado já sabe da necessidade e importância de ter mulheres em cargos de liderança há algum tempo e isso não se perderá”.
O otimismo não é um exercício cândido. Ele está ancorado na história. Períodos de intensa crise podem ser renovadores, ao acelerar transformações, mesmo que no princípio tudo pareça devastador. Durante a I Guerra Mundial, enquanto os homens eram enviados ao combate, a população feminina foi alçada a cargos profissionais que permitiram bons salários, inaugurando uma liberdade que inexistia. A ampla presença de mulheres na manufatura de equipamentos bélicos, na condução de trens e ônibus, além de outras atividades, teve ares de revolução. E agora? Não há guerra, mas pode estar sendo plantada uma ideia que, aparentemente pequena, faça brotar imensas viradas. Para especialistas em trabalho e comportamento, o contato maior dos pais e maridos com as tarefas domésticas durante o home office pode inaugurar nova época com homens mais ativos nos lares. Além disso, quando houver outros períodos de distanciamento compulsório das mães de seus filhos, não em decorrência de uma pandemia, mas de obrigações profissionais, esses momentos tenderão a ser vistos com naturalidade. Não é pouca coisa, e pode representar a faísca de um interessante movimento social, agora construído em bases mais fortes, com as mulheres já razoavelmente encaixadas no quebra-cabeça do emprego, com variações entre países e classes sociais, mas afeitas a pedir espaço. E muito provavelmente, a mudança nos escritórios e fábricas ecoará nas residências. “Pode ser o início de uma grande mudança para a sociedade, com tarefas divididas de forma igualitária”, diz Regina, do Insper.
As mulheres perderam na primeira volta — mas têm tudo para recuperar o terreno. “We can do it!”, ou nós podemos fazer isso, é o que dizia um pôster americano de 1943, exibindo uma mulher de lenço na cabeça e braços musculosos, pronta para as batalhas profissionais. Aquela imagem até hoje é usada como símbolo da busca feminina por espaço. Assim será depois da pandemia, sem belicismo.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696