Do tempo em que o Brasil foi moderno
O livro 'Ao Lado de Lina', do arquiteto Marcelo Ferraz, ilumina o trabalho de uma figura fundamental: Lina Bo Bardi, criadora do prédio do Masp

A inauguração em março do edifício Pietro Maria Bardi, um prédio de 14 andares anexo ao Museu de Arte de São Paulo, o Masp, foi celebrado como interessante novidade para uma cidade e um país carentes de espaços para as exposições de arte. Há, contudo, um outro modo de olhar para a construção. Ela chama a atenção, uma vez mais e de modo ruidoso, para o que está ao lado: a bela e improvável construção de Lina Bo Bardi, “dois polos, um sob a terra e outro que flutua; no meio, a tensão do vazio”, marco da metrópole, obra de 1968. Durante muito tempo, desde então, aquele cubo virou símbolo da cidade, estudado, celebrado internacionalmente, impresso em cartões postais e capas de cadernos escolares. Em 2008, contudo, a feiosa ponte estaiada em cima do rio Pinheiros, no bairro do Brooklin, ganhou destaque – e então o Masp perdeu um tantinho do espaço que tinha, em movimento de mau gosto, pena. O anexo, reafirme-se, ajuda a pôr o Masp de volta na ribalta, e a celebrar o trabalho de Lina.
Nascida na Itália, ao longo de 45 anos de carreira no Brasil, poucos de seus projetos foram efetivamente construídos. Além do Masp, deve-se aplaudir o Sesc Pompeia, o Teatro Oficina e a Casa de Vidro, sua residência no bairro do Morumbi. Lina, porém, deixou um legado que não para de crescer, em sucessivos trabalhos em torno de sua obra. Há, nas livrarias, duas robustas biografias, Lina Bo Bardi – O Que Eu Queria Era Ter História, de Zeuler R. Lima, e Lina – Uma Biografia, de Francesco Perrotta-Bosch. Recentemente, houve o lançamento de Lina por Aldo, em torno do interesse do arquiteto holandês Aldo Van Eyck pelo trabalho dela. São livros muito bons, inteligentes e cuidadosos ao esmiuçar uma arquitetura sempre rica e inovadora, de mãos dadas com as contradições brasileiras.
Há, agora, uma extraordinária novidade, Ao Lado de Lina (editora WMF Martins Fontes), de Marcelo Ferraz, que esteve ao lado dela de 1977 a 1992, ao participar de todos os projetos no período, especialmente o Sesc Pompeia. Ferraz viu de perto, junto com outros dois companheiros, André Vainer e Marcelo Suzuki, o cotidiano do trabalho de Lina, seu modo de pensar e agir, os caminhos trilhados ao pousar as ideias no papel. É travessia emocionante, em trabalho seminal. O volume é uma rara oportunidade de olhar a intimidade de uma figura indizível e fundamental. O lançamento acontece nesta terça-feira, 15 de abril, a partir das 19h30 horas, no Sesc Pompeia, em São Paulo – e onde mais poderia ser?
Entrevista inédita
Há, em Ao Lado de Lina, uma interessante referência a VEJA – a publicação inédita de uma entrevista de 1988 que nunca foi publicada, com direito a fac-símiles de laudas batidas a máquina de escrever. Eu mesmo fui convidado por Marcelo Ferraz a escrever uma introdução para apresentar a conversa.
Eis o que aparece no livro, em primeira mão:
Era um rabisco e pulsava
EM 1988, eu trabalhava como editor da revista VEJA, em São Paulo, depois de uma temporada de dois anos como correspondente da publicação em Salvador, na Bahia. Desde a adolescência era amigo de Flávio Carvalho Ferraz, hoje renomado psicanalista, irmão mais novo de Marcelo Carvalho Ferraz, arquiteto que trabalhava com Lina Bo Bardi. Um dia – quando falávamos do Brasil que ensaiava sair da ditadura militar, quando sonhávamos com democracia e dignidade, no tempo da juventude e ingenuidade –, nos veio, ao Flávio e a mim, a ideia de levar Lina para as Páginas Amarelas da VEJA, a mais respeitada e influente seção de entrevistas da imprensa brasileira. Por meio do Marcelo, Lina soube do meu interesse. Ela relutou – e talvez fizesse bem em evitar os jornalistas, recolhida que estava em seu trabalho e seu mundo. Mas acabou por me receber, depois de muita insistência. Um único pedido me foi feito, e concordei – eu deveria lhe mostrar o resultado final da entrevista, antes de publicar a conversa. Não é uma postura padrão, mas também não é proibida. Certa vez, recebi de um dos mais competentes jornalistas da VEJA, que naquela época dirigia a publicação, um conselho: “Não há problema algum em submeter uma entrevista ao entrevistado, desde que ele não se ponha a alterar tudo. Para um professor, um cientista, em nome da precisão de informações, seria até uma obrigação. Mas, claro, não faz sentido dividir as dúvidas com um sujeito acusado de corrupção e desmandos”.

Portanto, o caminho estava trilhado, Lina leria a entrevista antes. Ela me recebeu numa tarde ensolarada, já não lembro se era verão ou inverno, outono ou primavera, em sua bela Casa de Vidro no bairro do Morumbi. Eu levava uma pilha de receios, algum medo, a timidez de enfrentar uma pensadora, uma profissional que desenhara parte da história de São Paulo e do Brasil. Na época, eu tinha 25 anos, ela, 73. Separei um bloquinho de anotações, uma caneta, liguei o gravador, apertei o play e o rec. E lá ficamos cerca de duas horas – entre sorrisos, sim, muita ironia e respostas inteligentes para perguntas banais. Foi bonito, e lembro até hoje. Dias depois, conforme combinado, entreguei ao Marcelo as folhas batidas à máquina – vivíamos em tempo pré-histórico, ainda não havia computador. Passada uma semana, ele me ligou, um tantinho preocupado. Lina tinha se incomodado porque, no texto de introdução, eu a chamara de “arquiteta”, e o correto seria “arquiteto”. Parecia pouca coisa, mero detalhe, mas foi o suficiente para puxar o fio de irritação dela, e quando Lina se irritava, era melhor sair de cena. Ela perdera a confiança. Era preciso alterar aquela palavra e alguma coisa ou outra a mais. Nunca soube exatamente o quê, a conversa desandou, apesar dos movimentos diplomáticos de Marcelo. Eu mesmo temi pela publicação e, finalmente, desisti.

Nunca cheguei a revelar a meus editores na VEJA que havia tentado uma entrevista com Lina Bo Bardi. Marcelo, zeloso, guardou a papelada. Trinta anos depois, me enviou o material para que eu pudesse relembrar o diálogo. O tempo fez bem. Tudo o que Lina disse tem a força, ainda agora, das novidades, das reflexões que poucos têm coragem de fazer. Mais interessante ainda são as anotações que ela esboçou ao longo das páginas datilografadas, negando ter dito o que disse, mas que fora gravado. Não achei as fitas, mas posso garantir que nada inventei. Acho graça, e vejo nesse jogo, com a letra rápida e veloz do “arquiteto” – Lina, eu aprenderia, viu? –, a beleza de uma mulher que não via o mundo em uma camada única, que ia e voltava no ritmo da história, fazia das palavras tijolos de civilização, e tinha total consciência de que as ideias precisam estar no lugar certo, na hora certa. A entrevista nunca foi impressa. Ressurge aqui, pela primeira vez, inédita. Merecia ser lida – ficou consistente, me orgulho. A conversa adquiriu maior densidade, saiu da planície e, ouso dizer, ficou emocionante, sobretudo pelas garras e garranchos de Lina nas laterais, revelados pelos fac-símiles. É como a frase de Carlos Drummond de Andrade a respeito do projeto-manifesto de Lucio Costa, de 1957, para o que seria Brasília: “Era um rabisco e pulsava”. Obrigado, Lina.
