Surpreendentes, vinhos da Geórgia começam a conquistar o Brasil
Há pelo menos 8 000 anos os habitantes da região domesticaram os cachos e já produziam exemplares de qualidade
Há anos, arqueólogos buscam os primeiros vestígios de elaboração do vinho, bebida que teve papel fundamental na aventura dos prazeres da humanidade. Já foram encontradas evidências no atual Irã, na Grécia e na região italiana da Sicília. Mas é na Geórgia, na interseção entre Europa e Ásia, que há a maior abundância de registros adequados a comprovar quanto a fermentação de uvas é uma tradição milenar. Há pelo menos 8 000 anos os habitantes da região domesticaram os cachos e já produziam exemplares de qualidade. De forma surpreendente, sabe-se agora que os métodos ancestrais continuam a ser usados na fabricação da bebida até hoje. A novidade: de forma gradual, alguns rótulos do país, pequeno em extensão, mas diverso em termos de variedades de cepas, se espalham pelo mundo, aparecendo nas cartas de restaurantes estrelados. Começam a desembarcar também em solo brasileiro.
Para entender o caráter único dos georgianos, é preciso compreender como são preparados. Em geral, no caso dos vinhos brancos, as uvas são prensadas e é a partir do suco delas que a bebida é feita. As cascas são descartadas. No caso dos tintos, o processo é diferente e o suco fica em contato com as cascas para ganhar pigmentação e taninos. Na Geórgia, há produtores que usam os dois métodos. Mas há uma terceira variação: brancos que ficam em contato com as cascas. No linguajar da moda, o estilo ficou conhecido como “vinho laranja”. Parece novidade, mas trata-se de método tão antigo quanto a própria bebida, que dá uma coloração distinta e uma leve adstringência por causa da presença de taninos, típico dos tintos, também nos brancos. Não é só isso. Em vez dos tradicionais barris de carvalho, os georgianos usam os chamados qvevri, grandes vasos de terracota que ficam sob a terra, por vários meses. Juntas, essas técnicas dão origem a uma bebida surpreendente, que cativa paladares de quem se habitou aos clássicos da França e da Itália.
Um dos produtores que estão à frente desse resgate do vinho georgiano é o americano John Wurdeman. Nos anos 1990, então estudante de artes plásticas, ele descobriu a música folclórica da Geórgia e ficou encantado. Visitou o país e apaixonou-se também por sua cultura, incluindo, por óbvio, o vinho. Comprou uma casa lá e conheceu o viticultor Gela Patalishvili, que o convocou para divulgar os rótulos ancestrais. Assim, criou com o novo parceiro a Pheasant’s Tears, em 2006. Em quase vinte anos de trabalho conjunto, montaram um portfólio extenso, atrelado a variedades autóctones, vinificadas de maneira tradicional. “Foi preciso recuperar vinhedos, principalmente em regiões montanhosas, abandonados durante a era soviética, que privilegiou quantidade sobre qualidade”, diz Wurdeman, que esteve no Brasil para participar da Feira Naturebas, especializada em vinhos naturais. A notoriedade não demorou, ao despontar em cartas de endereços refinados da Europa e Estados Unidos.
No Brasil, é possível encontrar cinco dos vários vinhos assinados pela dupla Wurdeman e Patalishvili (veja alguns exemplos no quadro).Não são os únicos, embora as alternativas disponíveis em território brasileiro não sejam exatamente abundantes. Algumas das novidades que desembarcam por aqui passam pelo crivo de André Baader e sua mulher, Karla, personagens cativantes no mercado. Formados em gastronomia, conheceram-se na cozinha de um hotel no Disney World, em Orlando. Apaixonados por vinho, viajaram pelo mundo estudando até decidirem mudar para a Geórgia. “Ela raramente está nos livros. Resolvemos então aprender com os locais sobre a história milenar de uma vinificação muito particular”, diz Baader. Os Baader são típicos “wine hunters”, ou caçadores de vinhos, especializados em vasculhar o leste europeu. Há interesse pelos rótulos vindos de lá, mas muitas vezes os apreciadores daqui ficam surpresos com os aromas e sabores, tidos como rústicos. “Para beber um rótulo georgiano, os amantes de vinho precisam abrir uma página em branco no seu caderninho do conhecimento”, diz Baader. E vale a lição: convém sempre beber de tradições antigas, ao menos na gastronomia.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901