Rio Grande do Sul promete safra de vinho de qualidade internacional
Estiagem favorece a maturação das uvas em 2020, elevando a concentração de açúcar na fruta, o que permitirá a elaboração de bebidas com potencial de guarda
Desde que os imigrantes italianos trouxeram na bagagem, além das mudas de videira, a cultura do vinho para o Rio Grande do Sul, há um sonho na região: produzir bebida de qualidade internacional. Entre 1875 e 2020, quase 150 anos depois, a produção evoluiu significativamente. Mas a adaptação das uvas viníferas, aquelas usadas na elaboração de vinhos finos, sempre foi um empecilho para que o brasileiro pudesse desfrutar bebidas equivalentes a congêneres europeus feitos em território nacional. Isso pode estar perto de mudar — ao menos é o que asseguram enólogos e agrônomos. A safra de uva vinífera colhida no início deste ano no estado está sendo considerada a melhor de todos os tempos. Isso graças à estiagem que atingiu em cheio os vinhedos por lá durante o verão.
A safra deverá apresentar uma queda na produção, em média, de 20%, devido a fortes chuvas que caíram em outubro e afetaram a floração das plantas. A quebra parcial, porém, será revertida em qualidade. “A partir do início de dezembro, ocorreu em todo o estado uma estiagem, um período de pouca chuva, com tempo seco, o que é excelente para a maturação das uvas. Quando isso acontece, sempre temos safras de qualidade, como as de 1999, 2005 e 2018. A de 2020 desponta como a melhor dos últimos vinte anos”, explica Mauro Celso Zanus, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho.
O tempo seco durante as fases de formação do grão, de maturação do cacho e até o momento da colheita favorece o amadurecimento da uva, aumentando a concentração de açúcar. Outro ponto determinante para o bom desenvolvimento do vinhedo é a amplitude térmica, com dias bem quentes e noites frias, o que estimula a formação dos aromas. Esses fatores juntos resultam na maturação ideal tanto do açúcar quanto dos taninos — substâncias que conferem textura e adstringência à bebida — da uva, o que levará à produção de um vinho mais encorpado, mais estruturado, mais elegante e fácil de beber.
Um dos principais parâmetros que mostram a qualidade superior da safra de 2020 é a graduação do açúcar na fruta, que neste ano atingiu, em média, 3 graus acima do registrado em temporadas normais, segundo o padrão Babo, a medida que representa a quantidade de açúcar a cada 100 gramas de suco. “Em 2020, conseguimos nos nossos vinhedos uma marca histórica de uma média de 24 graus Babo, quando o normal é alcançarmos 21 graus. O que tivemos nesta safra é o máximo da qualidade que pode ser atingida em qualquer outro país produtor de uva na elaboração de um vinho tinto seco”, relata Edegar Scortegagna, enólogo da vinícola Luiz Argenta.
Com uma matéria-prima de primeira linha, a questão agora é saber qual será a qualidade dos vinhos elaborados no Rio Grande do Sul. “Se o enólogo seguir o caderno da escola de enologia, com a menor intervenção possível, vamos ter bebidas de qualidade superior diferenciada, com vinhos mais encorpados e com grande potencial de guarda”, explica o presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Daniel Salvador. Atualmente, a tecnologia à disposição das empresas é muito melhor do que aquela utilizada quinze anos atrás, na safra histórica de 2005. As vinícolas inovaram no manejo dos vinhedos, trocaram as mudas, investiram nos equipamentos e nas técnicas de vinificação.
A grande maioria dos vinhos tintos produzidos nesta safra deverá estar disponível para o consumidor daqui a dois anos. Alguns tintos jovens e os brancos poderão ser encontrados no começo de 2021. “Como estamos falando de bebidas de qualidade elevada, as empresas devem envelhecer esses vinhos por, no mínimo, um ano antes de engarrafá-los, com passagens por barricas de carvalho. E ainda assim serão vinhos de guarda, que poderão ser armazenados por mais dez anos a quinze anos”, analisa Adriano Miolo, presidente e enólogo da vinícola gaúcha Miolo.
De fato, o caminho para que uma ótima uva se torne um excelente vinho é considerado longo. “O maior defeito que vejo em safras de grande potencial é quando os enólogos ficam entusiasmados com a qualidade da fruta e acabam fazendo a extração em demasia, o que deixa os vinhos sobrecarregados de taninos e duros, demorando anos para arredondar”, afirma o especialista Dirceu Vianna Junior, o único Master of Wine brasileiro, que vive em Londres. Não há dúvida de que 2020 é uma safra com extraordinário potencial para os vinhos brasileiros. Resta torcer para que a mão do homem agora aproveite o que a natureza concedeu.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679