Receita tropicalizada: ceviche conquista o Brasil e ganha versões diferentonas
Prato tradicional do Peru foi adotado de forma ampla no país, onde é preparado até com manga e caju

Era uma provocação e não demorou a se revelar uma profecia: “Um dia, o ceviche peruano será amado em todo o mundo”. A frase, do chef peruano Gastón Acurio, dita há coisa de vinte anos, representou o marco de uma conquista. Hoje, o prato feito com peixe fresco cru, servido com um molho à base de limão conhecido como leite de tigre, atrai paladares em todo o planeta. Acurio, à frente da rede La Mar, ajudou a difundir a receita, como um embaixador da boa gastronomia. Na trilha do saboroso sucesso é natural que brotassem variações, em fenômeno a um só tempo recente e estabelecido. No Brasil, a iguaria foi de tal modo incorporada que já aparece até em democráticos bufês a quilo, pasmem, e rodízios japoneses. Ganhou ingredientes nacionais, como a manga, e ficou tão conhecido que muita gente esquece da origem.
Há intenso debate em torno dos primórdios do ceviche. É encontrado em toda a costa oeste das Américas, do Chile ao México. E sabe-se que desde 200 d.C. o povo mochica, que habitava o litoral norte do Peru, já usava um suco de frutas ácidas e sal para marinar e preservar os peixes. É inegável, contudo, que a contribuição peruana tenha sido fundamental e que Acurio seja o mentor da explosão. Desde 2023, a criação é reconhecida como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Boa parte dos aplausos é resultado da versatilidade. “O ceviche pode ser feito de diversas formas, utilizando vários tipos de peixes, frutos do mar e até mesmo frutas”, diz o chef peruano Marco Espinoza, que vive há dezesseis anos no Brasil, dono de restaurantes em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde comanda a cozinha de duas unidades do Cantón, primeiro estabelecimento no país a mostrar a culinária chifa, que mescla tradições peruanas e chinesas. Atento ao casamento de culturas à mesa, Espinoza acaba de lançar o Manual do Ceviche, em que mistura história, guia de viagem e receitas adaptadas para os ingredientes disponíveis no Brasil. Em seu restaurante Lima, no Rio, serve um ceviche tropical feito com caju, castanha de caju e batata baroa. No Cantón, oferece uma releitura oriental, com leite de tigre combinado a molho de soja, pepino, ervilha torta e wonton frito.

Há algumas — poucas — regras para o bom preparo. É fundamental começar com o leite de tigre, ácido, levemente apimentado e com uma riqueza de sabores. É ele que vai dar complexidade ao prato. A base deve ser preparada no dia e a montagem final só deve acontecer no momento de servir. Os ingredientes precisam ser muito frescos, especialmente os peixes. Não à toa, a tradição no Peru diz que as boas cebicherías só abrem na hora do almoço, quando o peixe é verdadeiramente fresco.
Os elogios globais à delícia autorizam tratá-la como porta de entrada para a riquíssima culinária do Peru. “É nosso cartão-postal”, diz Espinoza. Como um dos dezessete países considerados “megadiversos”, dada a enorme variedade de espécies vegetais e animais, o Peru tem cena gastronômica vibrante (e lembre-se que o Brasil também está no rol). Em Lima, restaurantes como o Central, do chef Virgilio Martínez, e o Maido, de Mitshuharu Tsumura, foram eleitos os melhores do mundo. O grande Mario Vargas Llosa certa vez foi direto ao ponto, ao lançar o romance Um Herói Discreto, comparando o ceviche às míticas pedras de Machu Picchu. Tem um sabor de exagero, mas não dá para discordar totalmente.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956