Produtores artesanais de queijo do estado de São Paulo ganham o mundo
Eles consolidam a relevância de uma cultura atrelada ao turismo
Com pitadas de ironia, em 1962 o então presidente francês, Charles de Gaulle (1890-1970), disse a verdade: “Como é possível governar um país com 246 variedades de queijo?”. Naquele tempo, a França já era reconhecida pela diversidade na produção de derivados do leite, embora contem-se hoje mais de 1 000 tipos — a quantidade exata é incerta e, muito provavelmente, pode ser maior. O Brasil pode até não ter tantos queijos diferentes, mas segue sendo difícil governá-lo ou, dito de outro modo, difícil fazer andar as eleições com calma.
O ponto: o país recentemente ganhou relevo no cenário internacional de laticínios. Por muito tempo, o estado de Minas Gerais foi reconhecido (e com razão) como polo produtor de qualidade. Agora, quem se destaca é São Paulo, que há alguns anos vem pavimentando o caminho por meio de iniciativas inovadoras e forte apelo turístico. Pegar a estrada rumo ao interior e descobrir como os bons queijos artesanais são feitos tornou-se um passeio comum para quem vive em centros urbanos. E, assim, o ecossistema de uma cultura se fortalece.
Prova do bom momento das queijarias paulistas é o trabalho realizado pela Pardinho Artesanal, na região oeste do estado. O projeto começou há dez anos. Aos poucos, teve a produção aprimorada, passando a usar apenas leite de vacas próprias, como forma de garantir o sucesso da matéria-prima. Criaram a infraestrutura para maturação, com prateleiras de madeira em cavernas revestidas de pedra. No início, usavam-se 350 litros diários de leite. Hoje, são 1 300 litros — produção ainda considerada pequena, mas que mostra o crescimento consistente. “Trabalhamos para traduzir o mundo rural, da produção de produtos de qualidade”, diz o proprietário, Bento Mineiro. Agora, realiza a Festa do Porco em parceria com o chef Jefferson Rueda. O evento, com ingressos esgotados, mostra a relação de longa data entre os dois. Rueda usa os queijos da Pardinho em seu restaurante, e a queijaria cria porcos, que se alimentam do soro do leite e depois são usados pelo chef. Outros produtores locais também vão se reunir para mostrar seus quitutes. “O legal é mostrar como tudo anda junto, como a cadeia de um produto está relacionada com a de outro”, diz Rueda.
A Pardinho faz parte do Caminho do Queijo Artesanal Paulista, grupo de dez produtores que se formou em 2017 com a finalidade de fomentar o turismo. Com o tempo, a união de produtores cresceu — hoje são dezesseis — e passou a ter mais atribuições, como a busca por mudanças na legislação para permitir a comercialização de queijos elaborados com leite cru, desde que passem por maturação de ao menos sessenta dias. “Estamos na ponta de lança de inovações e de formas diferentes de comunicar esses produtos ao Estado. E são ações que só podem ser feitas em grupo”, afirma Paulo Lemos, da queijaria Lano-Alto, de São Luiz do Paraitinga, integrante da associação de produtores.
Boa parte do apelo dos queijos artesanais paulistas vem justamente da inovação. Não há a mesma tradição de Minas Gerais. Lá, Canastra, Cerro e Cerrado têm selos de indicação geográfica para o queijo de leite de vaca cru integral feito nas regiões, o que atesta a procedência e a qualidade. Mas a falta de regras mais rígidas dá liberdade criativa aos queijeiros de São Paulo. Existe uma interessante busca por referências na Europa, principalmente França e Itália. A maior parte dos produtos é feita com leite de vaca, mas há espaço para outros, de leite de cabra. “Não ter a história a nos nortear pode ser negativo, já que não carregamos uma longa travessia de produção nas costas”, diz Lemos. “Contudo, essa condição nos tira a amarra, o que autoriza a busca de novos caminhos, de descobertas.” As queijarias de São Paulo, reafirme-se, têm hoje uma seleção de queijos fixos no portfólio, mas há espaço para lançamentos sazonais e edições especiais, que funcionam como laboratório de técnicas.
O próximo passo é atrair consumidores novatos. Há esforço em levar as peças a restaurantes badalados. A realização de eventos também ajuda a atrair atenção. A Pardinho Artesanal, aliás, deu início à internacionalização. “Exportaremos nossos produtos para os Estados Unidos, para lojas especializadas”, diz Bento Mineiro. Clientes estrangeiros poderão, então, conhecer o terroir único, de clima tropical, capaz de dar origem a grandes queijos — de um país duro de governar.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912