O quinto elemento: umami começa a ganhar espaço também nos drinques
O paladar descoberto por um cientista japonês no início do século XX avança na coquetelaria
A beleza da gastronomia é feita de fascinantes descobertas. Em 1907, um cientista japonês, Kikunae Ikeda, professor de química da Universidade Imperial de Tóquio, entusiasmado pelo caldo de algas feito pela mulher, decidiu entender de onde vinha a pegada levemente salgada e adorável da comida. Em laboratório, ele o reduziu a dois aminoácidos, o glutamato e o aspartato, e batizou a descoberta de umami — saboroso, em japonês. E então o mundo passou a expressar um quinto gosto, para além do doce, do salgado, do amargo e do azedo. Não é nova, portanto, a aventura de uma percepção gustativa presente inclusive em alimentos como o queijo, o leite e o tomate. O extraordinário, agora, é vê-lo se expandir em menus badalados no mundo inteiro, e com avanço na coquetelaria. As bebidas extraem dos alimentos naturais o umami — e dá-se um movimento que merece atenção, o dos profissionais do drinque reinventando taças clássicas.
A prática é trabalhosa e, embora soe um tantinho ortodoxa, tem atraído atenção. “Os bartenders olham para o coquetel como prato”, diz Rodolfo Bob, consultor de bares. Entre os clientes dele já esteve o Caledonia, em São Paulo, onde desenvolveu o King James, drinque que continua na carta e tem queijo grana padano, jamón ibérico curado e manteiga de garrafa (todos, ressalte-se, com o glutamato do umami na composição). Os ingredientes levam dois dias para serem finalizados. Na largada, a manteiga de garrafa líquida passa por um processo de infusão no uísque irlandês. A mistura é congelada. Passadas 24 horas, a manteiga se solidifica e então pode ser separada do destilado, que a essa altura está aromatizado. Em seguida, a bebida vai para dentro de um sifão, junto com o queijo, que é pressionado com dióxido de nitrogênio. O presunto curado é servido separadamente, em um garfinho na base da taça, para realçar ainda mais o sabor do líquido.
O tom de laboratório, com um quê de alquimia, é atalho para invenções de todo tipo, algumas um pouco estranhas, verdadeiramente estranhas, mas interessantes demais para serem desdenhadas. A pizzaria paulistana Picco, por exemplo, levou para dentro do copo a mais tradicional das pizzas, a margherita. Como é possível? “Clarificamos o molho de tomate, que depois é misturado ao caldo da muçarela de búfala e à tequila”, diz Lula Mascella, sócio da casa. O resultado: um drinque cítrico, com toque de ervas e minerais, com gosto intrigante de pizza — banhado, é claro, de umami. Virou a estrela do lugar.
Herdeiros do genuíno interesse dos Ikeda, lá no início do século XX, os restaurantes japoneses, ou de inspiração oriental, navegam na onda com fervor. Bebem, por assim dizer, da onipresença do saquê, que ocupa o topo do ranking em concentração de glutamato. No Rio de Janeiro, a dica é o bar do restaurante Elena, que turbinou o umami do coquetel de tomate, ao trocar o tradicional molho inglês por outros elaborados na casa à base de shoyu: o ponzu (com cítricos e infusionados com kombu, uma alga marinha) e o tonkatsu (de ostras e saquê). “Levei quase um mês para desenvolver os novos ingredientes do Bloody Elena”, diz a chef do bar, Taynah de Paula. Ah, e tem mais: no drinque ainda vai vodca infusionada com endro e Jerez.
Dada a força da onda, a indústria se rendeu à tendência. Acaba de chegar ao mercado brasileiro o Johnnie Walker Blue Label Elusive Umami, elaborado pelo chef Kei Kobayashi, proprietário do parisiense Kei, restaurante com três estrelas Michelin, e pela mestre em mixologia Emma Walker. Não há dúvida: quando as vendas ultrapassam o modo artesanal, é indício de que virou bom negócio. E logo, logo o quinto elemento pode vir a se tornar tão conhecido e identificável quanto seus pares. Saúde!
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888