Foie gras começa a ganhar substitutos politicamente corretos
Até a versão de castanha-de-caju já se passa pelo original
“Os patos que me perdoem, mas eu amo foie gras”, disse certa vez o aclamado chef espanhol José Andrés, que coleciona estrelas Michelin em seu pequeno império de restaurantes nos Estados Unidos. O carro-chefe de seu The Bazaar, em Los Angeles, eram “pirulitos” de foie gras, “fígado gordo” em francês, até que a Califórnia aprovou uma lei em 2012 barrando a venda da iguaria, por acusações de maus-tratos às aves. Dinamarca, Austrália e Reino Unido, entre outros países, proibiram a produção — militante da causa ambiental, o rei Charles III expurgou o prato das 22 residências reais. No Brasil, um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados quer fazer o mesmo. Ciente da má fama universal adquirida pelo delicioso patê inventado na França, o espanhol Javier Fernández, CEO da startup Hello Plant Foods, pegou carona na crescente aceitação das alternativas à base de plantas para proteínas animais e lançou em dezembro o mais bem-sucedido foie gras vegano do mercado. Na primeira leva, as 5 000 unidades se esgotaram em doze horas. Na segunda, de 30 000, a demanda seguiu intensa.
Ao contrário de outras opções de foie gras sem fígado existentes no mercado, em geral de baixa qualidade, a Hello Plant Foods garante que testou mais de 800 receitas ao longo de um ano antes de lançar seu Fuah!, através de parcerias com dezenas de restaurantes na Espanha. “O objetivo era que o cliente não conseguisse distinguir o foie gras original do vegano. E conseguimos”, afirmou Fernández a VEJA. O resultado final é um produto à base de castanha-de-caju, óleo de coco, farinha de lentilha e fécula de batata, com extrato de beterraba e especiarias, em duas versões: um patê no clássico vidrinho francês para conservas e uma peça inteira de meio quilo. A novidade fez o faturamento da empresa subir 400% em relação a 2021. Segundo Fernández, a capacidade de produção foi aumentada para 16 000 unidades por dia e, além dos mais de 200 restaurantes espanhóis que já compram o produto, a empresa está selando parcerias com revendedores nos Estados Unidos, Portugal, Itália e França.
Entre as imitações comercializadas antes do Fuah!, apenas o Voie Gras (v de vegetal), da Nestlé, tinha boa aceitação na Europa, mas sua produção é limitada e não atende à demanda. Segundo pesquisa da Nielsen, 75% dos millennials e da geração Z favorecem produtos ecologicamente corretos — e o foie gras definitivamente não se encaixa na definição. Para produzir a iguaria, patos e gansos são submetidos a confinamento e alimentação forçada, através de uma cânula inserida em seu pescoço, para que adquiram um fígado até doze vezes maior do que o normal e com 65% do peso em gordura. Na França, responsável por 80% da produção de foie gras do mundo, o chef Fabien Borgel passou a oferecer uma versão vegana — batizada de Faux (falso em francês) Gras — em seu restaurante 42 Degrés, no elegante 9º arrondissement de Paris. “As pessoas querem mudar a forma de comer e estão buscando alternativas”, diz Borgel. Outro substituto deve chegar às lojas dentro de um ano: a startup francesa Gourmey planeja lançar um foie gras sintético, cultivado em laboratório.
Alguns fatores vêm contribuindo para impulsionar as vendas do foie gras do B, mais barato do que o original. Um é a alta global de preços devido às crises energética e logística causadas pela guerra na Ucrânia, que resultou em uma inflação acima de 10% na Europa, o dobro da de 2021. Além disso, o continente foi afetado no ano passado por uma vasta epidemia de gripe aviária que diminuiu o número de aves — e fígados — disponíveis. Na França, projeta-se que a produção de foie gras em 2022 tenha caído 35%, com a contrapartida de uma alta de preços de 20%, passando de 60 euros (340 reais) o quilo. O produto da Hello Plant Foods, por exemplo, custa um terço disso. “Quem mais consome o Fuah! não são os vegetarianos, são os carnívoros conscientes”, afirma Fernández.
Nada disso quer dizer que o foie gras tradicional vá desaparecer. Originário do Egito Antigo, onde se descobriu que gansos e patos migratórios armazenavam gordura no fígado, o legado culinário foi transmitido aos romanos e aos judeus na Idade Média, antes de conquistar a França no Renascimento. A tradição é tão arraigada que, mesmo com preços decolando, uma pesquisa recente mostrou que 77% dos franceses não estão dispostos a trocar a versão tradicional por substitutos. “Da mesma forma que os brasileiros nunca deixarão de comer picanha, os franceses não vão abandonar o foie gras. É um artigo de desejo de luxo”, diz Alberto Landgraf, chef do premiado Oteque, no Rio de Janeiro. Aos poucos, porém, o foie gras sem foie vai se introduzindo na culinária europeia, com pretensão de ganhar o mundo. Patos e gansos agradecem.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826