A volta do prazer de cozinhar em casa
O isolamento tem feito pessoas sem a menor experiência com as panelas. O organismo agradece
A pandemia do novo coronavírus provocou uma revolução silenciosa, a portas fechadas, na vida dos brasileiros: a mudança na alimentação. O confinamento, que nos obrigou a ficar dentro de casa, em muitas situações sem a ajuda profissional para as tarefas domésticas, pôs a cozinha no lugar central na rotina das famílias. Levantamento feito pela empresa inglesa de mercado GlobalWebIndex com dezessete países mostrou que um terço dos brasileiros passou a cozinhar desde o início da quarentena — e comida de verdade. As receitas prediletas são aquelas em que cada ingrediente é preparado artesanalmente. O prático e insosso caldo de carne em cubos, que pode ser diluído instantaneamente em água fervente, foi substituído por receitas caseiras com pedaços de bife e osso que demandam não menos de uma hora para ficar prontas. Os temperos desidratados, em pó, deram lugar a plantinhas frescas e cheirosas. A saúde agradece, com efeitos evidentemente positivos (veja no quadro ao lado). O ícone dessa transformação é a ex-modelo Rita Lobo, dona da marca de sucesso Panelinha. Em seu programa de televisão pelo canal GNT, Cozinha Prática, e nas apresentações pelo YouTube ela valoriza a “comida de antigamente”, aquela preparada por nossos avós, com jeitinho caseiro, alimentos naturais e o mais decisivo: de forma simples, para quem não tem experiência. Ela mesma se interessou pelo forno e fogão apenas aos 18 anos, já crescida, quando desejou uma atividade paralela que durasse a vida toda — e que se transformou em ganha-pão. “Aprendi a cozinhar em escolas e livros”, diz nas redes sociais.
Pedir a comida pronta em um restaurante ou lanchonete tem ainda papel decisivo em tempos de quarentena, obviamente. Apenas em São Paulo, houve um aumento de 200% no uso dos aplicativos de delivery. Mas, com a reclusão durando mais do que o imaginado, deu-se a urgência de total dedicação às atividades domésticas — além da economia. “O atual movimento de volta para a cozinha é um dos mais significativos das últimas décadas”, diz o nutrólogo especialista em gastronomia Daniel Magnoni, do Hospital do Coração.
Depois da II Guerra Mundial, grandes companhias começaram a produzir comida barata e pouco nutritiva. Preocupava-se mais com o barateamento dos produtos e dos processos de produção do que com a saúde dos consumidores. Mas isso não foi de todo ruim. A profusão de alimentos industrializados, alguns muito bons, e as várias formas de empacotamento permitiram o planejamento antecipado de um cardápio inteiro, dispensando a atenção de uma pessoa da casa para o preparo de uma refeição. Paralelamente, as redes de lanches rápidos, lançadas nos Estados Unidos, substituíram os talheres por embalagens. Foi um modo de adaptação à vida moderna, necessário, embora nem sempre saudável. Nos anos 1980, o movimento alimentar chamado slow-food surgiu na Itália como uma reação contrária à tentativa de construção de um McDonald’s na Piazza di Spagna, em Roma. O objetivo: defender as tradições gastronômicas regionais e as refeições de longa duração. A partir de então a sociedade passou a exigir produtos mais equilibrados, com informações transparentes nos rótulos. Gigantes da indústria alimentícia se adaptaram, lançando marcas com baixo teor de açúcar, sal e gorduras, sem lactose, sem glúten ou provenientes de fazendas orgânicas. Empresas e startups usam recursos tecnológicos para tornar os alimentos bons e adaptados às novas demandas, baseadas em rigorosos estudos científicos. “O que se vê agora é diferente”, diz Priscilla Primi, professora de nutrição da Universidade Paulista (Unip). “Não é apenas a procura por uma dieta equilibrada, mas a descoberta do prazer de cozinhar o próprio alimento.” Que a mudança tenha vindo para ficar.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692