A lasanha agora é estrela em restaurantes requintados
O prato não é mais encontrado apenas em cantinas e endereços populares
Muitos brasileiros do Sul e Sudeste comem lasanha em casa no almoço de domingo, seguindo uma tradição dos imigrantes italianos. O prato é preparado pela mulher mais importante da família, seja a avó, a mãe ou a tia. Vai à mesa em travessa comunitária e é dividido entre oito ou mais pessoas. Além dessa circunstância, até a década passada a lasanha só era encontrada nas cantinas, os restaurantes populares de influência italiana, surgidos em São Paulo, ou similares, nos quais nunca saiu de moda. A novidade é que a trivial lasanha — um dos símbolos da gastronomia italiana no mundo — virou atração de endereços requintados. Essa ascensão começou na Itália, na década passada, e se espalhou internacionalmente. No fim de 2019, o diário econômico The Wall Street Journal, especulando sobre as próximas tendências alimentares, ressaltou que a lasanha “parece estar ganhando terreno” e exaltou sua presença em restaurantes elegantes de Nova York.
Fenômeno semelhante acontece no Brasil. Em São Paulo, desde o último dia 15, a Vinheria Percussi passou a oferecê-la à clientela. “Percebi que havia uma onda de interesse mundial e fui atrás”, explica a chef Silvia Percussi. “Já faz sucesso, pois nossa clientela aparentava esperar por ela.” Servida em delicada panelinha de cobre, sua lasanha é para uma pessoa. A Vinheria Percussi pratica a alta cozinha italiana contemporânea.
Considera-se a lasanha uma das mais antigas receitas de massa da Itália. Horácio, poeta lírico e satírico romano, citou-a no século I a.C. Entretanto, o prato ainda estava longe de se assemelhar ao contemporâneo. As tiras largas e achatadas eram assadas no forno ou talvez fossem fritas. A receita aparece entre os alimentos favoritos do povo de Pompeia, a cidade próspera, junto ao Golfo de Nápoles, soterrada pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C. Conta a lenda que Napoleão Bonaparte foi homenageado com um banquete, em Roma, pela antiquíssima família Colonna — o ramo principal do clã se estabeleceu na cidade em 1200. No menu, havia lasanha. Encantado com o prato, o imperador dos franceses teria perguntado se existia “comprovação idônea” da antiguidade da lasanha. “Não sei, majestade, mas há 2 000 anos falam isso”, respondeu-lhe o anfitrião.
A revalorização da lasanha, antítese da tendência atual de privilegiar alimentos menos calóricos, tem a ver com a redescoberta da cozinha italiana tradicional. O fenômeno começou nos anos 2010, com o resgate pelos bons restaurantes italianos de três molhos veteranos de massa: cacio e pepe (queijo pecorino romano e pimenta-do-reino); matriciana (guanciale, o bacon não defumado feito com as bochechas do porco, mais queijo pecorino, tomate e, em algumas variações, cebola); e carbonara (pancetta, a barriga de porco temperada, curada no sal e seca, além de ovos, queijo parmesão, queijo pecorino, toucinho, pimenta-do-reino e banha, azeite ou manteiga).
“Acredito que as pessoas estejam querendo comida normal”, diz Rogério Fasano, sócio e administrador do restaurante italiano Gero, de São Paulo (que tem no cardápio uma lasanha de folhas finas e delicadas), crítico de pratos atrelados a inesperadas texturas e sabores. “Cansaram-se do interminável menu degustação dos chefs inventivos. A cozinha italiana está em vantagem, pois sempre valorizou mais a qualidade da comida do que a habilidade de quem a prepara.”
Marco Renzetti, dono e chef do Pettirosso Ristorante, de São Paulo, especializado em iguarias romanas, chama a nova onda culinária de “febre mundial”. Ele abriu seu estabelecimento em 2007, já com as massas cacio e pepe e à matriciana. No ano de 2009, introduziu o espaguete à carbonara. “No próximo outono, o Pettirosso terá lasanha”, anuncia. Correndo na lateral, o chef Alex Atala, estrela de primeira grandeza da cozinha brasileira, lançou uma versão congelada do prato no seu Mercadinho Dalva e Dito, de São Paulo, para ser levada para casa.
Os italianos se ufanam do sucesso de pratos da sua intimidade familiar, porém põem um pé atrás. Temem o que chamam de “falsificações culinárias”. Gostariam de impedir que no molho cacio e pepe, por exemplo, o pecorino romano seja substituído por outro queijo e que no matriciana se use pancetta em vez de guanciale; também condenam o molho carbonara quando a pancetta é trocada pelo bacon. As “falsificações” são criticadas pela Accademia Italiana della Cucina, associação de gastrônomos com sede em Milão e delegação inclusive no Brasil. Seu trabalho de maior repercussão foi justamente a regulamentação da lasanha verde à bolonhesa, a mais difundida das variantes do prato — folhas largas de massa verde alternadas por ragu, bechamel (molho branco) e queijo parmesão ralado. Muitas vezes ela é preparada com dois ingredientes vetados: a mussarela e o creme de leite. A associação de gastrônomos acha isso um horror, a ponto de, em 2003, ter registrado solenemente a receita autêntica na Câmara de Comércio de Bolonha, na presença de autoridades nacionais.
“Queremos preservar a identidade dos nossos pratos”, explica Giovanni Ballarini, presidente da Accademia. “Respeitado o modelo autêntico, são lícitas as interpretações conforme a sensibilidade de quem as realiza.” No caso da lasanha, vai ser difícil impedir que restaurantes como os paulistanos Vinheria Percussi, Pettirosso e Gero deem seu toque particular à receita, apresentando-a mais bonita e leve do que no passado. “A sorte foi lançada”, como disse o general Júlio Cesar ao cruzar com suas legiões o Rubicão, rio então interditado pela lei romana.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671