Um Dia dos Pais ‘raiz’, com futebol e ‘cannoli’ na Mooca
Juventus, tradicional clube da zona leste paulistana, abriu as portas da Rua Javari para uma festa familiar entre amantes de esporte e culinária
Entrar no estádio Conde Rodolfo Crespi, a popular Rua Javari, no italianíssimo bairro da Mooca, é uma verdadeira viagem no tempo. Pouca coisa mudou no local desde o dia em que Pelé marcou, segundo ele próprio, o gol mais espetacular de sua carreira, em um Juventus x Santos, em 1959. As surradas arquibancadas, o placar atualizado manualmente, o velho alambrado próximo ao gramado cheio de falhas e os deliciosos cannoli se tornaram um símbolo de resistência ao futebol moderno e às arenas padrão-Fifa que se espalharam pelo país. O programa, que ganhou ares “cult” nos últimos tempos, ocorreu em versão mais familiar neste sábado. Torcedores – e simpatizantes – do Clube Atlético Juventus tiveram a chance de viver um dia de jogador profissional, com direito a hino nacional antes do jogo e entrevista coletiva depois, no evento “Jogar na Javari”. Na véspera do Dia dos Pais, o momento foi cheio de emoção entre familiares.
“Se fizer gol em mim vai ficar um mês sem celular”, brincou o administrador Roberto Pinheiro, o Betão, goleiro da equipe branca, com o filho Raphael, que atuaria na equipe contrária, grená, em uma das sete partidas do dia. Os “atletas” pagaram de 300 a 600 reais para participar do evento promovido pelo Moleque Travesso, como é conhecido o clube de raízes italianas fundado em 1924 e que hoje disputa a segunda divisão do Estado. O aposentado Eugênio Senese Neto aguardava no vestiário a chegada do filho, que havia perdido a hora. “Nesse Dia dos Pais, eu dei o presente ao meu filho, mas ele não chegou, acho que vou ter de jogar no lugar dele”, disse, depois de mostrar orgulhoso a seu treinador uma foto que tiraram juntos anos atrás. O “técnico” era ninguém menos que Ademir da Guia, ídolo do Palmeiras nas décadas de 60 e 70, que tirava selfies e contava histórias no modesto vestiário.
“Nunca joguei aqui, sabia? Quando tinha Palmeiras x Juventus era sempre no Pacaembu ou no Palestra”, contou Ademir. O outro treinador era o irreverente ex-volante do Corinthians Biro-Biro, também bastante assediado pelos fãs. O comentarista Alê Oliveira, que recentemente trocou a ESPN Brasil pelo Esporte Interativo, ficou responsável pelos comentários e divertiu atletas e torcedores com suas brincadeiras transmitidas nos alto-falantes. “Esse zagueiro me lembra muito o Piqué. Mas só pela beleza”, se divertiu Alê, que assim como Ademir e Biro-Biro também atuou em uma das partidas do evento.
Frangos, golaços e comemoração em família
A bola rolou sob um calor escaldante, em partidas de dois tempos de 20 minutos. No jogo inaugural, o goleiro Betão, aniversariante do dia, deu sorte. Sua equipe demonstrou mais organização e melhor forma física desde o início e já abriu o placar cedo. O grandalhão arqueiro, porém, tratou de dar emoção ao jogo: em chute despretensioso de fora da área, que ia para fora – ele jura que não –, o goleiro se atrapalhou com o gramado judiado em sua área e acabou colocando a bola para dentro, em um frango que divertiu os parentes e amigos que ocupavam parte dos cerca de 3.000 lugares do estádio. O time branco seguia tocando melhor a bola e não deu chances ao adversário. O atacante Ricardo Senese, o filho de Eugênio, que chegou a tempo, mostrou oportunismo e marcou três vezes, também contando com a colaboração do goleiro adversário. “Meu pai me deu o presente que foi jogar aqui e eu retribui com gols”, brincou o metroviário, que foi abraçar o pai, no banco de reservas, na primeira comemoração.
Betão voltou a ser vazado em uma infelicidade coletiva: após lançamento, ele saiu mal do gol e foi enganado pelo quique da bola. O meio-campista Vinicius Louzi ainda fez um esforço impressionante e conseguiu salvar a bola em cima da linha, mas na sequência da jogada tentou driblar um adversário e acabou entregando o gol. “Eu salvei o gol de um jeito tão bonito que depois não podia completar com um chutão”, brincou Vinicius, empresário de 33 anos, que por pouco não foi jogador profissional e foi o grande destaque da partida. “Independente do resultado, o importante foi se divertir com os amigos e familiares e ajudar quem precisa nesse evento tão bacana”, completou, em entrevista à TV do Juventus na zona mista, no fim da experiência de um dia de profissional. Para entrar no estádio, os torcedores deviam doar um alimento ou produto de limpeza, que seriam destinados a uma instituição de caridade do bairro.
O goleiro Betão ainda teria seu momento de consagração no dia em que completou 48 anos. O camisa 10 Carlão sofreu pênalti e cedeu a cobrança ao goleiro, que bateu com tranquilidade e balançou as redes da Rua Javari. O jogo terminou 5 a 2 para a equipe branca e Betão foi rapidamente tirar onda com o filho Raphael. “Seu time estava muito mais forte”, reclamou o garoto de 15 anos, que assim como o pai é torcedor do São Paulo. “Hoje eu tive meu dia de Rogério Ceni: tomei um frango e fiz um gol”, divertiu-se o espirituoso goleiro, que disse ter vivido um dos Dia dos Pais mais especiais de sua vida.
Passeio gastronômico
“Cadê o Seu Antônio, meu?”, questionavam torcedores na entrada do estádio, próximo ao busto de Pelé. Antônio Pereira, de 67 anos, adotou o nome de Antônio Cannoli por sua habilidade em fazer a sobremesa criada na Sicília, na Itália, que vende na Rua Javari há 47 anos. “Cheguei agora, às 11h, mas estou fazendo cannoli com minha esposa desde às 3h da madrugada”, contou o comerciante filho de pai português e mãe espanhola, que aprendeu a fazer o doce aos 10 anos de idade com um casal de italianos. Antônio, que sobreviveu a oito infartos, caminha com dificuldade, mas não perdeu a simpatia e faz questão de oferecer pessoalmente seus cannoli de chocolate e creme, que vende a cinco reais – mas alguns são simplesmente presenteados. “Leva mais um, menino, é presente, faço questão”, insistiu Seu Antônio à reportagem, que já havia pagado por outro doce.
Ele ainda voltaria ao estádio na manhã do domingo, para trabalhar no jogo entre Juventus e Taubaté, pela Copa Paulista. “Depois vou curtir o Dia dos Pais comendo uma macarronada com meus cinco filhos”, contou, diante da fila que se formava em sua barraca de doces. Nas arquibancadas, desfilavam vendedores com a iguaria tradicional de estádio: um amendoim doce, grená como a camisa do Juventus. Em um pequeno lapso de modernidade, o Juventus também instalou food trucks atrás da arquibancada, que vendiam variados tipos de sanduíches, pratos italianos e cerveja – com álcool, claro. A melhor opção para o almoço, porém, estava na primeira esquina fora do estádio.
É na Esfiha Juventus, restaurante fundado em 1967, que os torcedores comemoram (ou afogam suas mágoas) após as partidas do Juve. Além de seus mais de 40 sabores de esfihas abertas, vendidas a uma média de sete reais, fazem sucessos os charutos e kibes recheados. Também foi ali que os atletas de fim de semana celebraram a oportunidade única. Na saída, uma breve caminhada pelos arredores do estádio deixa claro: o bairro da Moca e o Juventus estão umbilicalmente ligados. O escudo do time batizado em homenagem ao gigante de Turim (e que leva as cores do rival Torino) está em toda a parte, inclusive no supermercado de uma grande rede, próximo à Rua Javari. Na Mooca, a tradição italiana é honrada: para unir a “famiglia”, nada melhor que futebol e comida.