Opinião: um Sarriá 2.0 para a geração de ‘filhos do penta’
Não é exagero nem heresia. Do voleio de Richarlison até o maldito chute desviado de Petkovic, o jovem brasileiro viveu seu sonho mais bonito em Copas
DOHA – Petkovic. O sobrenome de origem eslava que por mais de duas décadas foi sinônimo de estrangeiro querido no Brasil, graças ao ídolo do Flamengo, o mais carioca dos sérvios, há três dias atormenta milhões de brasileiros. Por que raios sete jogadores da seleção decidiram pressionar a Croácia faltando quatro minutos para o fim da prorrogação? O desvio em Marquinhos, matando o goleiro Alisson, não sai da cabeça daqueles que sonharam o mais bonito sonho do hexa. Bruno Petkovic não é Paolo Rossi, longe disso, mas a eliminação nas quartas de final da Copa de 2022 tem, sim, ares de um Sarriá 2.0. Para os mais velhos, que vivenciaram o drama de 40 anos atrás, e mesmo para para a minha geração, que na infância e adolescência vibrou com Romário no tetra de 1994 e Ronaldo no penta de 2002, pode soar como heresia, uma romantização do fracasso. Mas basta uma conversa com um jovem para entender o peso desta eliminação — precoce, vexatória e, sim, muito dolorida.
Não houve em 2022 uma capa de jornal tão poética como a do Jornal da Tarde, que estampou apenas o choro do menino José Carlos Vilella Júnior e a data da Tragédia do Sarriá, como ficou eternizada a derrota do time de Zico, Falcão e Sócrates para a Itália na Copa da Espanha. Desta vez, e é por isso que muitos adultos passaram batidos pelo fenômeno, o pranto da derrota se viu representado em uma live do Casimiro ou um storie do influenciador Fred, do canal Desimpedidos. Na televisão, o mais tradicional dos meios de comunicação, Galvão Bueno, a voz da emoção do futebol brasileiro nas últimas quatro décadas, se despediu da transmissão negando ser pé frio — “narrei três finais e dois títulos” —, uma frase que em nada conforta os milhões de brasileiros que nunca viram o caneco ser erguido e depositaram todas as suas esperanças nos carismáticos “Pombo” Richarlison e Vinicius Junior, no platinado Rodrygo e no craque-problema Neymar.
Não se trata de comparar a qualidade dos atletas, ainda que esta seja vista como a geração mais talentosa do Brasil em muito tempo – e em 1982, convém lembrar, o Brasil caiu fora depois de uma série de quatro vitórias empolgantes, em gols repetidos à exaustão. Agora no Catar houve o interregno ruim da derrota para Camarões, com os reservas. A chave de 2022 está na expectativa que o time de Tite provocou, nas Eliminatórias impecáveis e de algum modo também nos primeiros quatro jogos do Mundial. Se não foram brilhantes, e definitivamente não foram, os triunfos contra Sérvia, Suíça e Coreia do Sul proporcionaram lampejos de alegria como o espetacular voleio de Richarlison, o golaço agônico de Casemiro e a tabelinha “com cara de Brasil”, que culminou em mais um gol do Pombo contra os asiáticos. Para os mais jovens, era como vivenciar, em uma viagem no tempo da série alemã Dark, a bomba de Sócrates contra a União Soviética, o gol de cobertura de Éder contra a Escócia, ou o passe de Zico para Júnior sambar na cara dos argentinos.
“Não é possível, que castigo monstro. Não sei nem o que falar”, tuitou a influenciadora Maísa, de 20 anos, 45 milhões de seguidores no Instagram, que estava no Estádio Cidade da Educação. É uma ferida que demorará a cicatrizar, tal qual a infeliz cruzada de bola de Toninho Cerezo há quatro décadas. Tércio Brilhante, um estudante de jornalismo de Fortaleza (CE) e dono de uma das @s mais interessantes do Twitter, é direto: “Nunca mais falo mal dos meus tios por remoerem Sarriá até hoje.”
Decidi procurar Tércio para entender o peso desta eliminação para a geração Z. Ele é um autêntico “filho do penta”, pois foi concebido durante o Mundial da Coreia e do Japão e nasceu em janeiro de 2003. “Nós esperamos por uma Copa como essa, em que o Brasil avançasse jogando bem e encantando. É um time carismático, jovem, com jogadores que demonstram apego à seleção”, diz o garoto de 19 anos. “Continua distante do torcedor, principalmente comparando a outros tempos, mas dentro da realidade atual é um time que conseguiu fazer o torcedor jovem sofrer e vibrar por ele de novo.”
Nunca mais falo mal dos meus tios por remoerem sarriá até hoje
— Tércio🇧🇷 (@bequebomdebola) December 11, 2022
Tércio traça uma linha do tempo bastante didática. Para a sua geração, as maiores glórias foram os títulos da Copa das Confederações em 2013, diante da Espanha, e o título olímpico contra a Alemanha na Rio-2016, ambos em noites apoteóticas no Maracanã e que tiveram Neymar como o grande protagonista. O camisa 10 é um fenômeno à parte, o retrato perfeito do choque de gerações. Se para muitos que viram Zico e Romário ele não passa de um menino mimado e arrogante que nunca ganhou nada importante (o que não deixa de ser verdade), para os garotos ele é a representação de um Brasil que eles apenas ouviram falar ou assistiram pelo YouTube.
“O Neymar é um espetacular jogador de futebol, sem igual, e tem um estilo delicioso, plástico. Ele inventa lances, como Garrincha ou Ronaldinho faziam. A coisa do moicano, a dancinha, o óculos… isso tem apelo, mesmo ele sendo mal-criado e tendo se tornado uma figura extremamente antipática a partir de 2016″, diz Tércio. “De lá para cá, Neymar foi cada vez mais mal assessorado, passou a viver com base no caos, nesse ‘vão ter que me engolir’. Mas ainda assim, o futebol dele segue sendo esplendoroso e ele jogou essa Copa do Mundo com um tesão sem igual. Ele fez um gol que seria um dos maiores da carreira dele, o do recorde com soco no ar do Pelé, histórico. Por tudo isso, esse jogo dói tanto, é um Sarriá pessoal.”
Parte da aura do time de 82 reside no fato de aqueles craques terem sido “gente da gente”, ídolos de clubes nacionais, acessíveis. Hoje não há nada disso, mas é a rede social que os conecta com milhões, bilhões de fãs, do Oiapoque a Bangladesh. São outros tempos, mas o fascínio pela canarinho, com todas as suas indiossincrasias, se mantém.
Ainda sobre Neymar, chamou a atenção a reação de seu ex-empresário, Wagner Ribeiro, assim que a eliminação foi consumada. O agente culpou o técnico Tite, que, segundo ele, “só serve para ser o orador da turma de formandos.” Ainda no Estádio da Educação, em Doha, Neymar foi na canela do amigo da família: “não fala merda, Wagner”, que, por sua vez, dobrou a aposta: “ele [Tite] fez muitas crianças chorarem…” Pode não ter sido um choro como o de José Carlos Vilella Júnior, que recentemente relembrou o clique do JT em edição especial de PLACAR, mas o vexame diante da Croácia de fato machucou uma enorme faixa da população que não vê a hora de desentalar o grito de campeão mundial. Em 2026, pela primeira vez, a seleção brasileira terá no time atletas nascidos depois do penta (este ano, o caçula era Gabriel Martinelli, de junho de 2001). Quem sabe não saia de um desses pés o gol que redimirá toda uma geração?