Nada será como antes: as transformações da Copa do Mundo para 2026
O Mundial acontecerá em três países — Estados Unidos, México e Canadá — e com 48 seleções. É o início de novos problemas
Para quem achou esquisita a Copa de 2002, disputada simultaneamente em dois países, o Japão e a Coreia do Sul, para quem achou estranho o torneio do Catar — o primeiro no Oriente Médio, com oito estádios a não mais do que uma hora de distância um do outro —, convém ir se preparando: o Mundial de 2026 será disputado em três países ao mesmo tempo, Estados Unidos, México e Canadá (veja no mapa abaixo). A final deve ser disputada na arena AT&T de Dallas, que evidentemente mudará de nome, por imposições comerciais da Fifa. E tem mais: serão 48 seleções, e não as tradicionais 32. Vai-se cumprindo, como atávico destino, a ideia do brasileiro João Havelange, que presidiu a entidade mandachuva do futebol de 1974 a 1998, de fazê-la mais forte e mais abrangente do que a ONU — ao custo de tenebrosas transações, como as que levaram ao Catar, uma monarquia absolutista que alimenta a misoginia e o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ e desdenhou da vida dos trabalhadores imigrantes que ergueram as luxuosas instalações esportivas e uma nova rede de metrô.
As Copas são reflexo de seu tempo, ímã das contradições da sociedade. Tê-la no Catar beira o inaceitável, mas não chega a surpreender. Em 1994, ela foi levada aos Estados Unidos, que engatinhava no futebol masculino — e se imaginava que a partir daquele momento haveria um salto de interesse (e portanto de lucros), que afinal não houve. O inchaço de 2026, portanto, ainda que soe exagerado, não pode ser tratado com espanto. Cabe entender as perdas e danos que o envolvem, para além do nó logístico com viagens tão longas e tantas seleções. Do ponto de vista do torcedor, e é isso que importa, o novo desenho forçará um modelo inédito de competição, com dezesseis grupos de três equipes, como foi acordado por vasta maioria dos dirigentes internacionais da bola.
A ideia pode resultar em aberrações que pareciam adormecidas e voltam como assombração, afeitas a mudar a extraordinária e apaixonante experiência de acompanhar uma Copa do Mundo. Haverá o risco, nas chaves com três times, de episódios como o malfadado “jogo da vergonha” entre Alemanha e Áustria na Copa de 1982, disputada na Espanha. Era o final da primeira fase. Um empate ou uma vitória dos austríacos mandaria os alemães de volta para casa. A vitória por 1 a 0 da equipe de Breitner e Rummenigge faria a seleção da Argélia arrumar as malas e os dois adversários em campo seguiriam no torneio. A farsa era evidente, depois dos germânicos marcarem logo aos dez minutos, com os dois times segurando o resultado que, na matemática, eliminaria os africanos do norte. Houve desassossego para as 41 000 pessoas no estádio e para quem acompanhava pela televisão. Ecoaram gritos em espanhol de “fuera, fuera”. Um torcedor alemão queimou sua bandeira. Muitos agitavam lenços brancos. O comentarista de uma emissora austríaca pediu aos telespectadores que desligassem seus aparelhos e durante trinta minutos ficou calado. Vistas hoje pelo YouTube as imagens do corpo mole em cores desbotadas impressionam.
Para os envolvidos, um eufemismo pueril em tom de guerra definiu o duelo como o Nichtangriffspakt von Gijón — o pacto de não agressão de Gijón. Na prática, foi como se o mundo inteiro tivesse sido feito de pato. “O que aconteceu naquele dia constrangeu os organizadores da Copa e mudou o futebol para sempre”, disse o juiz escocês Bob Valentine, que apitou aquela partida — era a sua primeira em Mundiais — e também não passou incólume, criticado por não ter distribuído cartões amarelos aos contrafeitores. O presidente da federação da Argélia entrou com reclamação oficial contra o árbitro e as duas equipes. Não deu em nada, é claro, naqueles dias. Na Copa seguinte, contudo, foi inaugurado o formato de grupos com quatro seleções, o atual, de modo a impedir armações como a de quarenta anos atrás. Mas agora, refém do gigantismo, a Fifa ensaia dar o passo atrás. “O risco da formatação com grupos ímpares é muito grande, e não por acaso alguns membros da Fifa já tentam outro caminho”, diz Manoel Flores, ex-diretor de competições da CBF, um dos mais reputados especialistas em negócios e tendências do mercado de futebol.
A Fifa, pressionada pela sombra do passado, a infâmia de Gijón, piscou. O ex-treinador francês Arsène Wenger, hoje chefe do Departamento de Desenvolvimento de Futebol da organização, admitiu no Catar, na semana passada, estarem levando à mesa outros dois formatos: doze grupos com quatro times cada um ou dois lados com 24 times. Fala-se até, na versão proposta inicialmente, a da trinca de times, de decisão por pênaltis em jogos que terminarem empatados já na etapa inaugural. O veredicto será anunciado apenas em 2023. Enquanto isso, o camelo permanecerá na sala, até que alguém o arraste para o deserto. O dilema: com os grupos de três, seriam realizadas oitenta partidas. O modelo de quatro ampliaria o número de jogos para inacreditáveis 104. Quem aguenta? É coisa demais — desde 1998, com 32 seleções, há 64 jogos. Quanto mais disputas, mais dinheiro, é natural. Agora em 2022 estima-se que a Fifa tenha lucro de 6,5 bilhões de dólares, fundamentalmente com patrocínios e direitos de televisão.
Estender a competição para além dos tradicionais trinta dias encheria ainda mais os cofres de Zurique, mas há um nó. As federações e os clubes europeus, especialmente, querem seus jogadores de volta e até os sindicatos de atletas chiam. Por um motivo simples: é tempo demais. “Pode até ser interessante atrair mais países, de modo a fomentar o esporte em outros cantos do mundo, mas há um problema de calendário e de possível enfraquecimento técnico do torneio”, diz Flores. Em outras palavras: fazer política, como a Fifa sempre fez, e simultaneamente ter seleções fortes, pode ser uma contradição em termos. Afinal, com 48 equipes, a chance de brotarem aberrações como o Catar e o Canadá, os lanterninhas do atual Mundial, é imensa. E lembremos: houve alguns resultados surpreendentes em 2022 — como a vitória da Arábia Saudita contra a Argentina e as do Japão contra Alemanha e Espanha. Contudo, entre os melhores, ficaram os de sempre, com uma ou outra exceção: Brasil, Argentina, França, Inglaterra, Portugal, Holanda e Croácia. Ressalve-se, ainda, que o presidente da Fifa, Gianni Infantino, não descartou fazer a Copa a cada dois anos.
Mudar sempre é bom, embora o ser humano tenha medo de mudanças. A expansão é da vida, é do capitalismo, e, como o futebol virou uma máquina financeira — apesar da corrupção, apesar dos roubos —, é esperado que se pense na ampliação do tamanho da Copa. Não há, contudo, como fugir da lembrança de um triste tempo, no Brasil, quando o Campeonato Brasileiro de 2000, por exemplo — ironicamente chamado de Copa João Havelange —, teve 116 clubes de três divisões, na impossibilidade de aplicar os critérios de acesso e descenso do ano anterior. No tempo da ditadura militar, nos anos 1970, de promiscuidade entre a nata de Brasília e os cartolas — e as duas turmas se sobrepunham —, um jocoso lema casava o partido do governo com os clubes: “Onde a Arena vai mal, um time no Nacional”.
Não é o que se deseja de uma Copa do Mundo. O que vale mesmo — apesar do recurso aborrecido do uso de equipes reservas com a classificação praticamente garantida, como fizeram França, Brasil e Portugal, derrotados por Tunísia, Camarões e Coreia do Sul na fase de grupos — é a bonita imagem dos jogadores coreanos ao fim da partida contra os lusitanos. No centro do gramado numa rodinha, abraçados, eles acompanhavam pelo celular o fim do jogo entre Uruguai e Gana. Os uruguaios ganhavam por 2 a 0 e não poderiam fazer outro gol, o que eliminaria os asiáticos pelo saldo. Foi comovente a festa — comprovação de que o esquema de agora, com grupos de quatro e jogos simultâneos na última rodada da primeira fase, é muito bom. É o avesso do inchaço que se propõe para a Copa de 2026, a correr pela América do Norte, de leste a oeste. Porém, como a força da grana ergue e destrói coisas belas, e a Fifa se especializou nisso, não há muito a fazer, a não ser esperar sentado no sofá, e ali ficar, semanas a fio, daqui a quatro anos. Nada será como antes.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819