Na Olimpíada, os atletas que mostram a vitória do corpo sobre a tecnologia
Eles fizeram dos Jogos um passeio ao tempo em que a mecânica de músculos e ossos valia mais do que equipamentos de ponta
O doping nunca deixou de servir como contrafação para aumentar o desempenho dos atletas. Os avanços da tecnologia de equipamentos esportivos, especialmente os tênis mais leves e os solados que impulsionam as passadas, ajudaram a melhorar os tempos nas corridas. Na natação, os maiôs a simular as peles de tubarão tiveram infame tempo de glória — até serem banidos, em 2010. Como a malandragem é o que é, e a ciência não pode tudo na lida com materiais, a Olimpíada de Paris iluminou um movimento interessantíssimo para as vitórias: o aperfeiçoamento do estudo da mecânica dos corpos associado às leis da física. É como um retorno ao tempo da ingenuidade, mas agora com minucioso conhecimento da anatomia do ser humano diante das regras imutáveis da natureza.
O exemplo mais bem-acabado do bom uso desse recurso é o nadador francês Léon Marchand, de apenas 22 anos, dono de quatro medalhas de ouro nos 200 metros borboleta, peito e individual medley e nos 400 metros medley. É o sucessor de Michael Phelps, mas de corpo franzino comparado ao colosso dos Estados Unidos. Marchand tem 1,87 metro; Phelps, 1,93. Mas, então, como fazê-lo peixe? O treinador Bob Bowman — o mesmo do americano, aliás — decidiu apostar nas viradas do pupilo. Montou uma equipe de altíssimo nível, de Arquimedes modernos, e dá-lhe ganhar centésimos de segundo vitais. O truque, por assim dizer: Marchand desliza, vai fundo na água, mas não tão fundo que, ao voltar à tona, sofra força contrária exagerada (veja no quadro). Em uma prova de 400 metros medley, ele fica submerso por cerca de 100 metros — Phelps, sublinhe-se, não passava de 80 metros. “As ‘golfinhadas’, como as que Marchand faz tão bem, já são consideradas como um quinto estilo na natação”, diz Nilson Garbarz, técnico e gestor de natação em águas abertas. É tática associada a uma evidência: a 1 metro abaixo da superfície, a resistência é 60% menor do que na linha do horizonte das raias. Mas por que outros nadadores não fazem como o gaulês? Porque ele tem dedos finos e mãos compridas, e o dorso musculoso, mas delgado.
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Saiamos da piscina, olhos para o céu — e bem-vindos a outro casamento de gente de carne e osso com a pressão da gravidade. O sueco Armand Duplantis, de 24 anos, venceu a prova do salto com vara, em espetacular recorde mundial, com 6,25 metros, atrelado a uma coreografia delicada e estudada. Ele corre como um velocista, a 10,3 metros por segundo. Encaixa a vara alguns centímetros antes do ponto culminante da caixa e a solta milésimos de segundo à frente do que fazem os outros. Chegou a esse desenho observando uma, duas, 1 000 vezes a si mesmo, até alcançar a perfeição, ou quase, porque ele ainda quer bater outras marcas. É o Dream Team de uma pessoa só. “Tentei convencê-lo a soltar a vara de modo normal, mas ele não se adaptou”, diz Greg Duplantis, pai e treinador. O campeão olímpico transformou rapidez e força em elegância.
Marchand e Duplantis, em mar e terra, digamos assim, devolvem ao esporte a beleza romântica de uma criação como a de Richard “Dick” Fosbury, que inventou, em 1968, na altitude da Cidade do México, de enfrentar de costas o sarrafo do salto em altura, mudando o centro de gravidade do corpo a caminho do voo. Depois dele, todos fizeram igual. O nadador e o saltador de 2024 podem ter influência semelhante, é o que o tempo dirá. Eis a beleza de toda Olimpíada, com um quê de romantismo e nostalgia.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905