Documentos obtidos por VEJA detalham batalha dos filhos de Zagallo por herança
Trata-se de um triste capítulo na biografia de um dos grandes nomes da história do futebol
Dono de trajetória vitoriosa, Mário Jorge Lobo Zagallo, o Velho Lobo, como era carinhosamente chamado, deixou cravado seu nome no panteão dos grandes na história do futebol mundial. O ex-ponta-esquerda recuado, posição que ele inventou, morreu em 5 de janeiro, aos 92 anos, consagrado como o único a colecionar quatro títulos de Copa do Mundo — duas com a canarinho, como jogador (1958 e 1962), uma como treinador, em 1970, e outra como coordenador técnico, em 1994. Comandou os quatro maiores clubes do Rio — Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco — e então foi trabalhar no exterior, à frente de seleções como Kuwait e Arábia Saudita. O espetacular currículo guindou o autor de tiradas memoráveis, supersticioso incorrigível, ao rol dos dez melhores técnicos de todos os tempos da revista World Soccer, em 2017. Com essa folha de serviços prestados à arte do esporte, Zagallo não merecia, depois de sua morte, ser arrastado para um barraco familiar em torno de uma herança estimada em cerca de 15 milhões de reais.
O duelo põe de um lado do campo, como se fosse um ringue, três de seus quatro filhos, que acusam o caçula de ter feito a cabeça do pai contra eles e embolsado, em transações atípicas, um naco da fortuna de Zagallo ainda em vida, o que teria lhe proporcionado um luxuoso dia a dia. VEJA teve acesso com exclusividade a documentos segundo os quais o tetracampeão, já com 85 anos, fez em 2016 duas polpudas doações a Mario César de Castro Zagallo, de 61, o mais novo da prole. A primeira foi de 3,05 milhões de reais e a segunda, de 2 milhões. Sem saber o que resta da herança, que tem justamente Mario César como testamenteiro, os irmãos Paulo Jorge, Maria Emília e Maria Cristina ingressaram, há dois meses, com uma ação na 3ª Vara Cível da Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
O processo é para “exigir contas”, deixando às claras todas as transações realizadas com a fortuna de Zagallo. “Desde 2016, minhas clientes não têm acesso a nada do pai. Requeremos débitos, pagamentos, recibos, notas fiscais, absolutamente tudo”, disse a VEJA Anelisa Teixeira, que defende as duas irmãs. Embora, por lei, qualquer pessoa possa dispor de 50% dos bens em vida, a advogada alega que as movimentações devem ser consideradas uma antecipação da herança — da qual Mario César, dadas as quantias que usou do espólio, talvez já tenha até usufruído. O caçula fez, sabidamente, recorrentes saques das contas do pai: como eram em conjunto com ele e a irmã Maria Emília, ela notou as baixas ao examinar o extrato. Algumas das retiradas beiravam os 100 000 reais. Também salta aos olhos um cheque de 950 000 reais emitido em 2016. Valores tão graúdos não pareciam ser compatíveis com o estilo de vida do Velho Lobo, àquela altura com a saúde debilitada, e o alerta foi aceso. Os irmãos começaram então a questionar os saques.
No mesmo ano de 2016, em que o caçula foi brindado com os generosos aportes do pai, deu-se um fato curioso: Zagallo lavrou novo testamento, substituindo o que havia feito em 1984. Passados apenas quatro dias de sua morte, o conteúdo logo veio à luz, tendo Mario César como inventariante. Um dos trechos que chamou a atenção é que Zagallo havia deixado ali registrado que estava “profundamente triste e magoado” com os filhos, à exceção do mais novo. Segundo o documento, Mario César deveria ser agraciado com 50% da herança, enquanto o restante, partilhado entre ele e os outros três filhos — algo que a lei prevê. Feitas as contas, o caçula teria direito a levar 62,5% do bolo e os irmãos, 12,5% cada.
Movida pelo trio que ficou com a menor fatia, a ação de prestação de contas que se desenrola na Justiça também mira os imóveis de Zagallo. Um deles, na orla da Barra da Tijuca, foi vendido em 2015, mas um ponto de interrogação paira sobre pelo menos mais três. “César dizia para quem quisesse ouvir que ia vender tudo de Seu Mario e deixar migalhas para os irmãos”, contou a VEJA a enfermeira Fabiane Ribeiro Barbosa, 39 anos, que cuidou da mulher de Zagallo, Alcina, antes de sua morte, em 2012, e depois do ex-craque, entre 2015 e 2021. “O César é muito inteligente e manipulador. Não aceitava quando o pai dizia não para qualquer gasto e conseguiu colocá-lo contra os outros filhos”, relata ela, que afirma ter visto, em uma ocasião, o caçula pressionar Zagallo a assinar três cheques em branco.
A batalha dos irmãos tem raízes mais antigas. Quando a mãe morreu, os quatro concordaram que todos os bens ficariam com o pai. Aí vieram as movimentações financeiras de Mario César, e os três tentaram anular o acordo na Justiça, sem sucesso. Sob tutela do caçula, o ex-treinador revelou mágoa com os filhos mais velhos, dos quais se afastou e até acusou de tentativa de extorsão. Estava contrariado com a pendenga no espólio da mulher. De acordo com Fabiane, Mario César atiçava a controvérsia — ele ficaria estimulando Zagallo, antes de entrevistas, a dizer que era o único filho que zelava por ele. Entre 2015 e 2016, documentos obtidos por VEJA confirmam que o patriarca foi a dois cartórios sacramentar que só o caçula poderia ter acesso às finanças. “É o único em quem confio”, registrou. “Era como se ele já preparasse tudo para um futuro questionamento”, avalia a advogada das irmãs. Nessa época, Zagallo chegou a prestar queixa na polícia contra a filha Maria Emília, sob a justificativa de que ela estaria “investigando suas contas além do que devia” e que, com os irmãos, tinha “forçado” a entrada em sua casa.
Com os demais herdeiros afastados do convívio do pai, Mario César, ainda conforme o relato de Fabiane, pilotava toda a rotina. “Ele comprou um barco novo para a casa que tinha em Angra dos Reis, mas recusava-se a contratar uma cozinheira para a casa do pai, que comia quase diariamente lasanhas de supermercado”, dispara a enfermeira, que moveu contra o caçula uma ação trabalhista, entre horas extras e salários não pagos, pela qual deve ganhar mais de 300 000 reais. E foi mais longe: em 2021, deu queixa na Delegacia da Mulher de Jacarepaguá, na Zona Oeste carioca, acusando o caçula do ex-jogador de estupro, em duas ocasiões. Fabiane diz que demorou a denunciá-lo porque nutria imenso respeito por Zagallo.
O processo foi arquivado pelo Ministério Público, por indícios de que o relacionamento era consensual, o que ela refuta. “Jamais tive um caso com o César. Que amante é essa que chegava a trabalhar 28 plantões em um mês?”, revolta-se a enfermeira, que entrou de licença no INSS com o diagnóstico de depressão causada por estresse pós-traumático e chora, a todo instante, ao lembrar do caso. Procurados, nem Mario César nem sua advogada se pronunciaram sobre este capítulo que não faz jus à gloriosa biografia do tetracampeão, nome do futebol brasileiro que só fica atrás de Pelé em reconhecimento mundial.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913