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Cinemateca retoma o projeto de preservação da coleção do Canal 100

O cinejornal tratou o futebol como arte e marcou época

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h25 - Publicado em 25 jun 2023, 08h00

Era como um ritual. Entrar em algumas das salas de cinema no Brasil entre o fim dos anos 1950 e meados dos 1980 significava ter de passar por um cinejornal antes de chegar ao programa principal, o filme em cartaz. Um deles, o Canal 100, cobria todos os tipos de assunto, de política a cultura, de medicina a economia — e esporte, com evidente preferência pelo futebol. Introduzido pelos acordes iniciais de Na Cadência do Samba — pã, pã, pã, pã, pã, pã —, canção composta por Luís Bandeira e imortalizada na versão instrumental de Waldir Calmon, as cenas de bola nos pés, bola nas redes encantavam corações e mentes.

Não importava se a partida era antiga ou recente, se era do campeonato carioca, do paulista ou da seleção brasileira. Valia o privilégio de ver em tela craques como Pelé, Rivellino, Tostão, Zico, Roberto Dinamite etc., em câmera lenta e ao nível dos olhos, marca registrada das produções capitaneadas pelo produtor Carlos Niemeyer e sua equipe. Depositado na Cinemateca Brasileira desde 2011, depois de ser adquirido pelo Ministério da Cultura (MinC), o acervo do Canal 100, que nos últimos anos correu risco de desparecer por inépcia e descaso, voltará a ser examinado, recuperado e classificado. É tesouro inestimável.

TESOURO - Pelé na seleção, em jogo no Maracanã (à esq.).: personagem inescapável das câmeras de João Rocha, sob direção de Carlos Niemeyer
TESOURO - Pelé na seleção, em jogo no Maracanã (à esq.).: personagem inescapável das câmeras de João Rocha, sob direção de Carlos Niemeyer (Fotos Cinemateca Brasileira/Divulgação)

O projeto faz parte do movimento Viva Cinemateca, lançado no início do mês. Contempla a retomada de um trabalho interrompido em 2013, quando uma crise institucional se instalou no maior arquivo audiovisual da América Latina — localizado no antigo prédio do Matadouro Municipal de São Paulo — e acabou por descontinuar a recuperação de coleções importantíssimas. O pacote do time de Niemeyer é composto por 8 000 latas de filmes, contendo mais de 21 000 rolos de segmentos de notícias. O material, que cobre o período de 1959 a 1986, está em diferentes fases de análise: 10 520 desses segmentos já foram incorporados e 11 273 ainda devem ser triados e tratados. É trabalho minucioso, de ourives, que inclui rever os filmes, identificar o conteúdo, eliminar partes estragadas, fazer emendas e encaminhar para duplicação em suporte digital. “Quando reabrimos a Cinemateca, o Canal 100 logo foi definido como prioritário”, diz Gabriela Sousa de Queiroz, diretora técnica da instituição. “Se não fizéssemos isso, as perdas seriam incalculáveis.”

O zelo com o Canal 100 é compreensível e louvável. Ele mudou a maneira de ver o futebol — e influenciou as coberturas esportivas em todo o mundo. Dirigidos por Niemeyer, cinegrafistas como Francisco Torturra e João Rocha, entre outros, pilotavam as câmeras Arri 2c alemãs para criar um olhar mais aproximado das partidas. Eles souberam usar os recursos novidadeiros de seu tempo, como acelerar a velocidade de exposição da película, para criar uma sensação quase onírica. É uma aula de cinema, reconhecida por grandes profissionais, e que ultrapassa as quatro linhas de quem gosta de esporte.

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arte canal 100

Descobrir o conteúdo dos rolos de filme em 35 milímetros do Canal 100, ressalve-se, é como montar um quebra-cabeças. “Daí a importância de se preservar também os documentos escritos”, diz Rodrigo Archangelo, pesquisador da Cinemateca. Muitas vezes, trechos de um cinejornal eram cortados e usados em outros episódios. Por isso, os roteiros de locução, que seriam lidos pelo vozeirão inconfundível de Cid Moreira, são fundamentais. Com eles, é possível saber quais foram usados em que cinejornal e, com a ajuda dos mapas de distribuição, onde foram exibidos. Essa combinação permite separar o trigo do joio, em belo trabalho de indexação, ao cravar as datas. Identificou-se, por exemplo, que o cinejornal de número 30, de 1969, traz imagens raras de dois jogos amistosos da seleção brasileira, ainda comandada por João Saldanha, que na Copa de 1970, no México, seria substituído por Zagallo. O primeiro aconteceu na inauguração do Estádio Batistão, em Aracaju, na vitória de 8 a 2 de Pelé, Tostão e cia. contra a seleção sergipana. O segundo, disputado na Ilha do Retiro, no Recife, acompanha o escrete no 6 a 1 diante da seleção pernambucana.

Há pressa no trabalho de salvação, porque o celuloide dos filmes é perecível e a ação corrosiva do tempo, implacável. “Por isso, enquanto pudermos, é fundamental preservar as imagens originais”, afirma Maria Dora Mourão, diretora da Cinemateca. Para isso, ela conta com 14 milhões de reais anuais, durante os cinco anos de vigência do contrato de gestão que começou em 2022. Este ano, excepcionalmente, o MinC acrescentou 10 milhões de reais extras — a ideia é incorporar o mesmo valor nos próximos três anos. A soma será usada na contratação e capacitação de técnicos e na lida com outras coleções em estado crítico, como os antigos filmes de nitrato do início do século XX. Recuperar a memória do cinema é um verdadeiro gol de placa, um gol de anjo.

Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847

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