Chocante batalha urbana no Recife mostra fracasso contra barbárie das torcidas
O resultado da partida pouco importa, é desnecessário saber. Todos perderam

Inaceitável. No sábado 1º, as ruas da região metropolitana do Recife foram tomadas por uma vergonhosa batalha urbana. Grupos de pessoas com os rostos cobertos e armadas com pedaços de pau, canos e pedras atacavam umas às outras. Vídeos que circularam pelas redes sociais mostraram um rapaz tentando sem sucesso entrar em um prédio enquanto era alcançado por um bando que o agrediu sem parar, com socos, chutes e pauladas. Outras imagens revelaram cena ainda mais animalesca: um homem desacordado e nu, estuprado pelas hordas numa das esquinas da capital pernambucana. O motivo: um jogo de futebol. De cada um dos lados das trincheiras estavam as torcidas organizadas do Sport e do Santa Cruz, que se enfrentariam em seguida pelo Campeonato Pernambucano, no Estádio do Arruda. O resultado da partida pouco importa, é desnecessário saber. Todos perderam.
Logo depois dos incidentes, o governo de Pernambuco proibiu a presença de torcedores nos cinco jogos seguintes de ambas as equipes, no Estadual e na Copa do Nordeste. A medida, endossada pela governadora Raquel Lyra (PSDB) e pelo Ministério Público de Pernambuco, tinha objetivo imediato e desesperado: conter a barbárie. Na segunda 3, contudo, o desembargador Fernando Cerqueira, do Tribunal de Justiça, acatou pedido da diretoria do Sport e derrubou a restrição. Em comunicado oficial, Cerqueira afirmou “que nenhum dos clubes que estiveram em campo (…) possui poder para inibir a ação dos marginais. Por isso mesmo, não podem ser punidos com a medida extrema de fechamento de portões”.
Cerqueira está certo — e errado ao mesmo tempo. Os cartolas dos grandes clubes de futebol fingem indignação diante desses episódios e reclamam de qualquer punição que possa atingir o seu caixa. Nos bastidores, no entanto, boa parte deles presta apoio às violentas torcidas organizadas, financiando caravanas e escolas de samba dessa turma. Não raro, quando o time vai mal, abrem as portas dos centros de treinamentos para os jogadores sentirem de perto a pressão das arquibancadas. Por fim, são omissos em engrossar iniciativas que contribuam para afastar os vândalos dos campos de futebol.

Responsabilidades dos clubes à parte, cabe às autoridades a maior parcela de culpa nessa goleada de vexames. Como está mais do que provado — e a batalha do Recife é o mais novo exemplo disso —, medidas como a de criar a regra da torcida única nos campos estão longe de resolver o problema. Estudos indicam que a maioria dos confrontos ocorre fora dos muros, muitas vezes a quilômetros de distância e até em datas diferentes das partidas. A proibição da presença de torcedores rivais nas arquibancadas como solução, portanto, ignora a raiz do problema. “Mesmo sem querer, isso mostra a fraqueza da segurança pública, o que reforça a descrença nas autoridades e estimula novas práticas criminosas”, critica o sociólogo Mauricio Murad, especialista no tema. Além de ineficiente, vale lembrar, a exclusão pune a maioria pacífica.
A ideia surgiu em 2016, depois de mortes em São Paulo, e hoje os clássicos entre times grandes do estado são disputados com apenas uma cor nas arquibancadas. Um dos autores da ideia foi o promotor de Justiça Paulo Castilho. Ele defende a iniciativa, diz que a agressividade “foi reduzida em cerca de 95% a 97%”, mas concorda que é preciso fazer muito mais. “É um problema de segurança pública, envolvendo criminosos infiltrados nas torcidas organizadas”, afirma. “É preciso um sistema de identificação rigoroso, punição severa e medidas complementares para coibir esses atos.”
Como soa complicado fazer andar a engrenagem de proteção, dá-se a saída mais rápida. O Secretário Nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, ele também favorável a ter uma única torcida em partidas relevantes, faz as contas e diz não ser possível agir de outro modo. “O custo para os órgãos de segurança pública seria imenso”, diz ele. “A população deixaria de ter o policial no seu bairro, que estaria escoltando as torcidas.” Um caminho seria o sistema de reconhecimento facial, que começa a ser aplicado e tem funcionado, de algum modo, ao identificar os arruaceiros. Não basta, no entanto, saber quem são. É preciso tirá-los de cena.

O que fazer? Alguns românticos sonharam alto e, no Rio Grande do Sul, estabeleceram uma zona mista, de convivência entre torcedores do Internacional e do Grêmio. Funcionou no começo, era bonito, mas não demorou para que escaramuças abolissem o projeto educativo. A solução, portanto, parece ser endurecer o combate aos criminosos. Não há bala de prata, mas convém olhar para o Reino Unido, que até os anos 1980 vivia as atrocidades dos hooligans, grupos de torcedores identificados pela permanente pancadaria. Dois episódios fizeram a engrenagem ser interrompida. Em 1985, durante uma partida entre o Liverpool e a Juventus, pela Copa de Clubes Campeões da Europa, no estádio Rei Balduíno, em Heysel, noroeste de Bruxelas, uma briga generalizada terminou com 39 mortos e mais de 600 feridos. Em 1989, na semifinal da Copa da Inglaterra, entre Liverpool e Nottingham Forest, 97 torcedores morreram esmagados ao forçar os portões do estádio de Hillsborough. Era hora de mudança, definitivamente.
A primeira-ministra Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, pôs a camisa 10, convocou um magistrado e dele exigiu amplo relatório e soluções. Trinta estádios foram construídos e centenas foram reformados. Os terraces (a antiga geral dos estádios brasileiros), hábitat favorito do hooliganismo, foram preenchidos com cadeiras. Mas, sobretudo, houve firme condenação — com cadeia e exclusão das partidas — dos que haviam feito da briga um esporte. Muitos foram afastados de três a dez anos. Outros, banidos para sempre. Deu certo, e pode servir de exemplo para as autoridades brasileiras. Em casos de crimes como as agressões de Recife, é preciso pena severa, dentro dos trâmites legais. Sem isso, não há como virar esse jogo.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930