Apesar do machismo, universo do automobilismo tem avanço feminino
Mas falta muito para que as mulheres cheguem ao pódio
Ainda bem que a napolitana Maria Teresa de Filippis não ouviu uma só palavra do que disse Toto Roche, diretor do Grande Prêmio de Fórmula 1 da França em 1958, quando anunciou à imprensa que ela não participaria da corrida naquele fim de semana. Segurando um retrato da jovem — e bela — piloto, ele disse aos jornalistas: “Uma moça tão bonita quanto essa não deveria usar nenhum capacete a não ser o do secador do cabeleireiro”. Quando soube do comentário para lá de misógino, a atleta disse que, se estivesse por perto, teria dado um soco em Roche. Ela estava habituada à hostilização e às tentativas de desprezo masculinas. Foram sombras na sua vida desde pequena, quando disputava com os dois irmãos quem era mais veloz nas corridas de carrinho, e continuaram perseguindo a piloto ao longo de sua breve, porém histórica, carreira na categoria mais nobre do automobilismo. Maria Teresa foi a primeira mulher a correr na F1, nos anos 1950, inicialmente pela equipe italiana Maserati e depois pela alemã Porsche. Conseguiu, numa das provas, o 10º lugar. Depois dela, somente a também italiana Lella Lombardi, no longínquo 1976.
Sessenta e cinco anos depois, esse universo machista permanece arredio à presença de mulheres nos cockpits, mas a bem-vinda e incontida onda de diversidade que cobre o mundo começa a fazer seus efeitos. Para este ano, há duas novidades interessantes. A primeira é o lançamento, pela Fórmula 1, de uma categoria só para mulheres. O objetivo é treinar as interessadas nas pistas até que estejam prontas para concorrer em circuitos de elite. Embora tenham acesso ao mundo da velocidade, elas em geral não passam das categorias que estão na base da pirâmide. “Por isso, as mulheres precisam concorrer em circuitos mais exigentes antes de se juntar à primeira categoria do automobilismo”, diz Stefano Domenicali, CEO e presidente da F1. A primeira temporada será composta de sete circuitos — três corridas em cada — e mais quinze dias para os testes com os carros.
A segunda boa nova é a chegada da belga naturalizada brasileira Aurelia Nobels, de apenas 16 anos, para competir na Fórmula 4 pela escuderia da Ferrari. A jovem está nas pistas desde cedo, quando começou no kart aos 10 anos, estimulada pelo amor do pai pelo automobilismo e por Ayrton Senna (1960-1994). Aurelia deseja pisar fundo. “Tenho uma longa carreira pela frente”, disse a VEJA. “Quero ser uma piloto de F1 e representar as mulheres nesse esporte.”
O automobilismo talvez seja a última atividade esportiva na qual as mulheres ainda não estão de igual para igual com os homens. O campo sempre foi visto como algo ostensivamente masculino e nem um pouco amigável. Houve avanço, contudo, em algumas questões. Acabar com a deprimente presença de lindas jovens que nada faziam a não ser segurar guarda-sóis enquanto os pilotos aguardavam o sinal verde para iniciar a corrida já dentro dos carros certamente foi um passo à frente ao menos no campo do simbolismo. Aumentar, mesmo que a ritmo lento, o número de integrantes femininas é outro feito a ser aplaudido. Dar crédito a elas, então, é digno de pódio. Até anos atrás, seria difícil ver profissionais como a engenheira Hannah Schmitz, chefe de estratégia da Red Bull Racing, ser reconhecida pela inteligência tática durante as corridas. Contudo, hoje é inequívoco que boa parte do sucesso da escuderia se deve à astúcia da engenheira.
No Brasil, há também ventos positivos, embora suaves em demasia. A engenheira Rachel Loh, do time Ipiranga Racing e única mulher responsável por um carro de Stock Car. Ela já ouviu muita piadinha de mau gosto enquanto fazia carreira na categoria. Diziam de tudo, inclusive que estava no meio para arranjar marido. Rachel não deu bola. Hoje, orgulha-se de ser membro da equipe técnica do GP São Paulo da F1, entre outras conquistas. A piloto Bia Figueiredo, uma das mais bem-sucedidas do automobilismo brasileiro, entende que o futuro será inexoravelmente mais generoso com as mulheres nas pistas. Porém, ainda com muito esforço. “Gostaríamos de ser mais ouvidas, inclusive para a criação de iniciativas como o desenho de novo circuitos”, diz. Soa inacreditável, mas as mulheres, maiores interessadas, não foram consultadas.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827