A vigorosa defesa da vacina feita pelo papa Pio VII
O santo padre ordena o uso de um tipo de imunizante no cuidado com a onda de varíola na Europa
O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Tradicionalmente cautelosa no que diz respeito às novidades científicas, a Igreja Católica adota agora postura surpreendente em relação a uma nova estratégia para o controle da varíola. A doença mata milhares de pessoas em todo o mundo e suas marcas — lesões que se espalham pelo corpo todo — instalam medo na população. Soube-se recentemente que, no Brasil, já se passaram mais de sessenta dias de vigência da determinação do papa Pio VII de que os moradores dos estados papais sejam inoculados com uma fórmula contra a doença. Chamada de vacina, ela impede que as pessoas tenham febre, suor, terríveis machucados sobre a pele ou, se apresentarem sinais claros da praga, contribui para que fiquem mais longe da morte. O papa disse aos fiéis católicos que o remédio “é um presente de Deus”.
O responsável pela criação da novidade é o médico inglês Edward Jenner, de 73 anos. Cientista muito interessado nos progressos da medicina, ele trata seus pacientes com a técnica da inoculação, conhecida na Ásia e que começou a se difundir na Europa e nas Américas há cerca de 100 anos. A descrição do método pode trazer algum asco aos mais sensíveis: colhe-se material purulento das feridas e, com a ajuda de objetos cortantes, insere-se a pútrida secreção na parte mais superficial da pele. Às vezes, os pacientes apresentam sintomas brandos da varíola. Mas, quando expostos a pessoas com a doença, não são consumidos por ela. Contudo, há de se mencionar casos nos quais o pobre inoculado acaba morrendo. Jenner soube que a gente do campo de seu país tentava se proteger esfregando na pele pus tirado de pústulas que aparecem em vacas, bem parecidos com os vistos em seres humanos. Em 1796, ele testou a hipótese no pequeno James Phipps, de 7 anos. Deu certo. O menino não pegou varíola mesmo após ter tido contato com doentes. O médico inglês deu ao procedimento o nome com o prefixo vacca, palavra latina para vaca.
Desde então, muitos entusiastas vêm aplicando o remédio. Tocado pelo aumento de casos que assola a Europa Central, o sumo pontífice decidiu ordenar a vacinação nos territórios sob seu domínio. Pio VII condenou aqueles que ainda hoje não acreditam na ciência. “O preconceito de alguns pais é maior do que o amor a seus filhos”, registrou na carta de convocação da população.
Mesmo com o apelo ao coração dos adultos e promessas de bênçãos celestes, o santo padre considerou por bem oferecer ainda recompensas do mundo terreno. Todos aqueles que apresentarem provas de que foram vacinados — há uma marca clara — terão prioridade na solução de seus pleitos na Justiça ou de ordem administrativas. Em relação aos médicos e enfermeiras que quiserem trabalhar nos territórios sob comando papal, não há misericórdia. Para conseguir emprego, eles serão obrigados a se vacinar. O negacionismo — mesmo na Igreja — parece ir na contramão do bom senso, é o avesso da realidade. Já não há espaço para quem, sabe-se lá em nome do quê, espalhe informações mentirosas, sobretudo no campo da saúde.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805