A aventura do príncipe a caminho do Ipiranga
Os passos da longa travessia feita por Dom Pedro em agosto de 1822, de modo a acalmar as lideranças paulistas
O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
“A melhor parte da viagem? A melhor de todas?”, indagou a VEJA o príncipe Pedro, em conversa ocorrida na noite da segunda-feira 2, às portas do Pátio do Colégio, sede do governo paulista. “Não foram as mulheres, não foi a aventura toda, não foram as boas recepções pelo caminho. Sem dúvida nenhuma foi ter vencido a aposta e chegado em primeiro à Fazenda do Pau d’Alho.” E então gargalhou.
O perfil às vezes galhofeiro, quase sempre animado e o tempo todo cheio de energia, é o que deve transcender, para a história futura do jovem príncipe regente brasileiro, que completa 24 anos no próximo mês e desde o ano passado, com o retorno da família real a Portugal, é chefe do governo das terras lusitanas deste lado do Atlântico.
Mas o que ficou claro na viagem de quase 600 quilômetros, entre a sede da corte e a capital da Província de São Paulo, percorrida por Pedro e uma comitiva que aumentava ao longo da travessia, com novos agregados, uns de confiança, outros nem tanto, é que Pedro é um hábil articulador.
Ele deixou a sua mulher, Leopoldina, encarregada de tomar os cuidados burocráticos da administração geral do Brasil, e empreendeu uma viagem com a missão de apaziguar os ânimos da elite paulista. Fontes ouvidas pela reportagem confirmam que há um receio, na corte, de que haja crescimento de motins separatistas, esfacelando a unidade do território — premissa esta fundamental para o rei dom João VI.
Nesse sentido, a viagem parece já ter sido um sucesso. Carismático, Pedro demonstra ser um líder capaz de conquistar seus interlocutores, arrebanhando mesmo os dissidentes para o seu lado da história. Conquistar também é um verbo que, em seu caso, funciona de modo especial para as mulheres. E, desse périplo, o sedutor príncipe arrebatou a irmã do major Francisco de Castro Canto e Melo, integrante da comitiva.
Domitila de Castro, casada até 1819 com um militar chamado Felício Coelho de Mendonça, que a esfaqueou (leia mais na seção Gente), nega que o príncipe seja o pivô de sua separação. Domitila se negou a dar entrevista, mas pessoas próximas confirmaram que ela não gostaria de ser apenas mais uma na longa fileira dos amores de Pedro. “Está completamente apaixonada. Quer ser a principal”, disse uma amiga.
Preparativos da viagem
Os poderes da regência do Reino do Brasil foram oficialmente transferidos para Leopoldina em 13 de agosto. Se para muitos a data é sinal de mau agouro, a alta cúpula da corte não viu problema algum no acaso do calendário. “Infortúnio seria adiar mais essa necessária viagem a São Paulo”, comentou, à boca pequena, um ministro.
O decreto justifica a função de Leopoldina como necessária, já que o príncipe teria de se ausentar “desta capital por mais de uma semana para ir visitar a Província de São Paulo, e cumprindo a bem dos seus habitantes e da segurança e tranquilidade individual e pública, que o expediente dos negócios não padeça” com tal ausência temporária, determinou que os ministros e secretários de Estado “continuem nos dias prescritos, e dentro do paço, como até agora, debaixo da presidência da princesa real do Reino Unido”. “Minha muito amada e prezada esposa”, escreveu Pedro, encarregando-a do “despacho do expediente ordinário das diversas secretarias do Estado e repartições públicas”, expedindo em seu nome, “como se presente fora”.
“E hei por bem outrossim que meu Conselho de Estado possa igualmente continuar as sessões nos dias determinados ou quando preciso for, debaixo da presidência da mesma princesa real, a qual fica desde já autorizada para, com os referidos ministros e secretários do Estado, tomar as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do Estado”, prosseguiu o documento.
Pedro destacou, contudo, que caberia a ela de tudo lhe “dar imediatamente parte para receber a minha aprovação e ratificação, pois espero que nada obrará que não seja conforme às leis existentes e aos sólidos interesses do Estado”.
O príncipe também nomeou, na mesma data, Luís Saldanha da Gama como ministro e secretário de Estado. Gama foi um dos acompanhantes da viagem e, ao longo do trajeto, conforme a reportagem testemunhou, teve o papel-chave: coube a ele expedir as ordens e os decretos oficiais emitidos por Pedro durante o trajeto.
Para compor sua equipe, Pedro convocou ainda o tenente português Francisco Gomes da Silva, conhecido como Chalaça (leia mais na seção Radar), um antigo amigo e companheiro de aventuras. Também achou oportuno ter a companhia do major paulista Francisco de Castro Canto e Melo, fazendo as vezes de ajudante de ordens. Como Canto e Melo é membro da tropa dos Leais Paulistas, sua presença funcionou como uma espécie de diplomata, uma ponte entre a elite de São Paulo, em parte insatisfeita com o governo, e o príncipe, pronto a selar acordos.
Dois criados do paço foram destacados para auxiliar na viagem, João de Carvalho Raposo e João Carlota. À reportagem, a comitiva gentilmente cedeu uma eficiente mula, que de forma competente conduziu tanto o jornalista como seus pertences de uso pessoal.
A partida de São Cristóvão ocorreu na quarta, dia 14. No itinerário, a primeira parada era Venda Grande, a cerca de 10 quilômetros dali. O ponto teve uma função estratégica, pois o local é hoje um importante entroncamento entre o caminho para as Minas Gerais e a Real Estrada de Santa Cruz, rota para São Paulo.
Pedro encarregou-se ele próprio de conversar com os comerciantes do local, habituados a fornecer abastecimento para viajantes. Encomendou víveres suficientes para toda a comitiva e demonstrou bom humor no trato com os vendedores.
Ali encontraram outros homens que se juntaram à tropa. Grande proprietário de terras na região de Campinas, com mais de 1 500 alqueires de lavouras, o tenente-coronel Joaquim Aranha Barreto de Camargo foi um deles. Alguns dias depois, ganharia a confiança de Pedro, que o nomeou, ainda no caminho, governador militar da praça de Santos. Deputado eleito às cortes de Lisboa, o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, vigário de Pitangui, também seguiu junto à comitiva.
“Nunca se sabe. Sempre me parece importante termos um padre para resolver aqueles problemas que não dependem dos poderes aos quais estou imbuído”, teria comentado, mais por troça do que por fé, o príncipe, segundo um dos integrantes da comitiva relatou.
Em termos de articulação, na verdade o grupo tinha o simbolismo da unidade política pretendida por Pedro. Se Canto e Melo e Barreto de Camargo representavam o poderio paulista, o padre-deputado Pinheiro de Oliveira era um notório político mineiro. Além disso, o religioso é aparentado, vale ressaltar, de José Bonifácio de Andrada e Silva, principal ministro e conselheiro de Pedro (leia o perfil de Bonifácio na pág. 32).
Na estrada
Ainda na quarta-feira, o grupo galopou, pela estrada jesuítica, até Santa Cruz. Ali pernoitaram na antiga fazenda dos padres da Companhia de Jesus, cuja sede foi transformada em palácio com a chegada da família real portuguesa ao Rio, catorze anos atrás. Houve, contudo, um pequeno entrevero logístico. Recém-destituído do posto de governador de São Paulo, o general João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg estava naquelas bandas, fazendo a rota inversa — ou seja, deveria se apresentar à corte, tendo seu mandato encerrado.
“Muito me alegra saber que a comitiva do príncipe aqui está. Aproveito e busco uma audiência com ele, privadamente”, disse à reportagem Oyenhausen-Gravenburg. Esse encontro, contudo, não ocorreu. VEJA apurou que, em virtude do momento político delicado que culminou com a demissão do governador e, principalmente, pelo fato de ele ser oposição ao grupo que gravita em torno de Andrada e Silva, um encontro poderia azedar os esforços apaziguadores da própria viagem em si.
De forma polida porém concisa, coube ao major Canto e Melo informar ao general que não haveria agenda com Pedro. E que ele deveria seguir viagem ao Rio, apresentando-se à princesa, incumbida da presidência.
A quinta-feira começou cedo para o grupo. Pelos caminhos da Estrada Real, trotaram de Santa Cruz até a vila de São João Marcos do Príncipe. A parada ali foi na sede da Fazenda Olaria, uma das maiores propriedades da Província do Rio de Janeiro, de propriedade do militar e latifundiário Hilário Gomes Nogueira.
“Infelizmente, nosso pai não se encontra. Está doente, acamado. Passa uns dias em nossa fazenda em Bananal, a Três Barras. Vamos comunicá-lo, de qualquer forma, da gentil visita do príncipe”, informou um dos filhos, Cassiano Gomes, recepcionando o grupo. Ele e seu irmão, Luís, decidiram tomar parte no grupo, acompanhando a viagem dali em diante.
Com eles, foi até mais fácil seguir até a próxima parada, justamente a fazenda onde estava o pai, Hilário. Era caminho já previsto, mas muito mais bem conhecido pelos irmãos que estavam habituados ao trajeto de mais de 65 quilômetros.
Visitar Nogueira era crucial para as articulações pretendidas por Pedro, já que ele, capitão-mor do Bananal, é o descendente das famílias pioneiras que, vindas das Minas Gerais, instalaram-se na região, abrindo fazendas de café no caminho entre o Rio e a capital da província paulista.
Gravemente adoecido, o capitão não se fez presente em nenhuma ocasião junto à comitiva, mas recebeu Pedro, em seu quarto, acamado, para uma conversa privada. A reportagem aproveitou para conhecer a importante propriedade de Três Barras, um dos grandes empreendimentos privados do Reino.
Guiados por um capataz encarregado de mostrar a produção, verificamos um extenso cafezal, de onde saem, por safra, 500 arrobas do grão. Há ainda produção de milho, arroz e feijão. E uma granja que produz excelentes porcos. VEJA contou ainda que a mão de obra do local é garantida por quase 100 negros, todos gozando de boa saúde e ostentando vigor físico.
O quarto dia da jornada foi o mais animado para Pedro. Em dado momento do trajeto, contudo, a reportagem notou que ele provocava alguns companheiros. Até que disparou adiante, num trote inalcançável.
“Disse que estava com pressa, com fome. Queria chegar logo. E então fez uma aposta que chegaria primeiro”, explicou Canto e Melo. “Nem deu tempo de respondermos. Sumiu.”
Quando a comitiva chegou à sede da Fazenda Pau d’Alho, outra grande produtora de café (400 arrobas por ano), uma certa preocupação pairou: onde estava o príncipe? “Aqui não chegou, ainda. Mas veio um mensageiro, avisando que vocês estavam a caminho. A mesa está posta na sala”, disse Maria Rosa de Jesus, a proprietária, mulher do sargento-mor João Ferreira de Sousa.
Foi possível ouvir os risos vindo da cozinha. Lá estava, fartando-se com um prato caprichado de guisado de porco, o “mensageiro”. Sim, o próprio Pedro, que se fez passar por um reles ajudante e servido junto aos criados (leia mais na pág. 48, na reportagem “Sua alteza é bom de mesa”).
Apoios decisivos
Reabastecidos, seguiram viagem. O destino era São Miguel das Areias, um pouso habitual de tropeiros. “Gosto como um lugar especial, porque é a única vila criada por decreto de meu pai em São Paulo”, frisou Pedro, pouco antes de montar, na manhã daquele dia. “E sabe por que se chama São Miguel? Homenagem ao meu irmão mais novo.”
Pedro é desses românticos, não só por ser um galanteador inveterado, mas também por não perder a oportunidade de destacar o afeto por seus familiares.
Ali a hospedagem foi na casa do capitão-mor Domingos da Silva Moreira, também importante cafeicultor, com uma produção anual de 300 arrobas. Os bons resultados políticos da empreitada paulista começaram a ser colhidos.
À noite, enquanto já estava instalado em seu quarto no casarão, de onde teve uma vista privilegiada da vila, Pedro recebeu um mensageiro. Era da Câmara de Areias. Trazia um recado dos vereadores, que enalteciam a presença do príncipe, como alguém que vinha “derramar por toda parte a luz, que deve guiar os passos incertos dos que mandam, e os que obedecem”. Eles também enfatizavam ser aquela a primeira vila a ter “o solo paulistano fecundado pelas plantas de um príncipe, que a experiência de mais de um ano tem mostrado ser a única âncora da salvação da monarquia, e o verdadeiro regenerador do Brasil”.
Economicamente, Areias tem um papel que parece ser promissor para este Brasil em construção. Sua localização-chave em meio a uma produção que tem sido essencial para as finanças, o café, a põe como uma vila que logo deve galgar mais e mais importância.
João Ferreira de Sousa e seu filho, Francisco, também se juntaram à comitiva. Na manhã do dia 18, o grupo caiu novamente na estrada. O destino era Cachoeira.
“Trago-lhes um ofício da Câmara de Guaratinguetá”, disse o professor Francisco de Paula Ferreira, parte de uma comitiva que abordou a tropa de Pedro no meio do caminho. As manifestações públicas de apoio político estavam se tornando mais contundentes. O grupo contava com o capitão-mor de Guaratinguetá, Manoel José de Melo, e o capitão-mor de Lorena, Ventura José de Abreu. “Com seu gesto de vir até a província, Pedro está cativando a empatia das lideranças. E isso vai ser fundamental para seus futuros passos políticos”, analisou um jornalista da região, que também presenciou esse encontro.
O jantar ocorreu no Porto de Santo Antônio da Cachoeira, um entroncamento importante para rotas de tropeiros. A essa altura, os cavalos já estavam sentindo o peso da longa viagem. A troca por animais descansados estava prevista para a próxima parada, o Rancho do Meira.
Foi sobre novos lombos, portanto, que a comitiva chegou à vila de Nossa Senhora da Piedade de Lorena, onde o pernoite ocorreu na casa do capitão-mor Abreu — uma das pessoas mais ricas da província, um grande proprietário de terras.
Em Lorena os apoios ao príncipe se tornaram mais e mais significativos. “Se a viagem foi uma boa ideia, só saberemos em breve. Mas que Pedro está mais seguro e mais autoconfiante, isso é visível”, comentou um dos membros da tropa. No almoço, um emissário trouxe quatro ofícios do governo de São Paulo, todos demonstrando simpatia pelo príncipe.
E a segunda-feira 19 foi de intenso trabalho para Pedro. Não só no lombo da cavalaria, mas também trabalho burocrático. Pedro deu expediente no Paço da Câmara de Lorena, de onde lavrou um decreto e emitiu três portarias.
O decreto confirmava a dissolução do governo provisório da província paulista. As portarias eram em consequência disso: a primeira dispensava a Guarda de Honra do governo, proibindo seus integrantes de usar uniforme sem a licença da regência; as outras duas determinavam às vilas de Itu e de Sorocaba, politicamente importantes, que passassem a dar obediência diretamente a ele.
Pedro aproveitou o escritório e emitiu portarias de agradecimento às câmaras que o haviam saudado até aquele momento.
Fé católica
A parada seguinte foi Santo Antônio de Guaratinguetá. Com a comitiva cada vez maior, já que a cada parada se juntavam novos companheiros, Pedro hospedou-se no casarão do capitão de ordenanças Manuel José de Melo, proprietário do imenso Engenho da Conceição, certamente um dos mais extensos latifúndios paulistas.
Representantes das vilas de Taubaté e de Pindamonhangaba já o aguardavam, com mensagens e ofícios de saudação. A essa altura, já parecida deflagrada uma verdadeira competição política para ver quem melhor acolhia o príncipe em São Paulo. E Pedro, ciente da importância dessas manifestações, não se furtou a despachar, mais uma vez, do paço: era preciso responder a cada uma das missivas, agradecendo pessoalmente.
No dia seguinte, 20, Pedro manifestou sua religiosidade. Não em vão, mas também agindo assim de modo político. Quando saiu de Guaratinguetá para a Vila Real de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pindamonhangaba, informado da história de Nossa Senhora Aparecida e ciente de que estavam muito próximos à capela erguida em honra dela, não titubeou e determinou que eles fariam do local uma parada.
A história é contada como milagrosa. Mais de 100 anos atrás, em 1717, pescadores encontraram uma imagem da santa, de feições tais e quais as da representação da Virgem Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, nas águas do Rio Paraíba do Sul. Primeiro, o corpo. Em seguida, a cabeça.
Mandaram erguer uma igrejinha para colocar nela a santa. E o local se tornou ponto de peregrinação e de manifestação popular de fé. No caminho, Pedro gravou suas iniciais em uma figueira. Quando chegou à capela, prostrou-se em oração, diante do altar. “Toda a família é muito religiosa”, disse um dos mais próximos integrantes da comitiva.
Depois de seu momento de oração, em tom de confidência, o príncipe disse que precisava muito daquele momento de fé. E que só pedia à Virgem Maria a intercessão, para que fizesse um bom trabalho à frente do Brasil. Não longe dali, na Fazenda Boa Vista, povoado de Nossa Senhora da Piedade de Roseira, a comitiva fez uma breve parada para nova troca de montarias.
Uma guarda de honra
O grupo seguiu viagem para a Vila de Pindamonhangaba. Lá chegando, foram recebidos pela elite financeira e política local: membros da Câmara e os coronéis Manuel Marcondes de Oliveira e Melo e Antônio Leite Pereira da Gama Lobo.
O sargento-mor Domingos Marcondes de Andrade juntou-se ao grupo, montado em um belo cavalo, que logo atraiu olhares e a cobiça de Pedro. “Belo animal… O dono deve ter muito apreço por ele”, disse o príncipe, quase pedindo o cavalo para si. “Não, alteza”, respondeu Marcondes de Andrade. “O apreço não é tanto, mas há um motivo poderoso para não lhe oferecer o cavalo.”
Diante da interrogação brotada na face de Pedro, o sargento-mor logo explicou. “Dizem que vossa alteza costuma pôr o nome dos doadores nos animais que lhe são presenteados. E um Marcondes, até hoje, jamais foi cavalgado.” Todos riram. Pedro e seus amigos parecem gostar de piadas de duplo sentido, especialmente as que trazem implícitas conotações sexuais.
Ficou acertado, então, que Pedro aceitaria de bom grado o animal. E se comprometeria a arrumar um outro nome qualquer para batizá-lo.
Coube ao religioso e político Inácio Marcondes de Oliveira Cabral, monsenhor, e a seu irmão, Manuel Marcondes de Oliveira Melo, a oferta do pouso em Pindamonhangaba. O casarão deles, visivelmente, é dos mais imponentes da região.
Antes de se recolher para seu aposento, Pedro recebeu alguns jovens, filhos de famílias endinheiradas da vila. Eles se ofereciam para formar uma guarda de honra, voluntariando-se para acompanhar a comitiva até a entrada em São Paulo.
Se por um lado a fama positiva de Pedro, enquanto um líder simpático, estava correndo pela região, a essa altura também já eram igualmente notórias as histórias a respeito de seu fraco por mulheres. Em conversa com a reportagem, o vigário da Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté — onde a comitiva se hospedou, na casa do cônego Antônio Moreira da Costa, no dia 21 — confirmou que fez um alerta para que “as jovens formosas” não dessem as caras pelas ruas durante a passagem de Pedro. “Não à toa, ele só viu matronas respeitáveis pela feiura”, afirmou, aos risos, um dos integrantes do grupo.
Em Taubaté, o príncipe seguiu recebendo representantes de diversas vilas do Vale do Paraíba e novamente gastou o expediente emitindo portarias de agradecimento do Paço da Câmara. A parada seguinte, na quinta-feira 22, foi em Jacareí. Vereadores da vila e oficiais da milícia da região, sob o comando do capitão-mor Cláudio José Machado, já o aguardavam. A reportagem testemunhou uma amostra de arroubo aventureiro do príncipe. Era preciso usar uma balsa para cruzar o Rio Paraíba e, assim, adentrar o povoado. Quando a comitiva chegou, a embarcação ainda estava do outro lado da margem.
Logo que avistou a multidão à sua espera do outro lado, Pedro olhou para os lados e não hesitou: entrou no rio, com montaria e tudo, atravessando-o com a água pela altura da cintura. Chegou ovacionado, é claro.
Mas sobrou para um jovem de Taubaté, Adriano Gomes Vieira de Almeida, uma tarefa inglória. Incomodado com suas vestes molhadas, o príncipe determinou que efetuaria a troca de roupas com o membro da guarda de honra que tivesse altura e corpo similares aos seus — e, claro, tivesse feito a travessia a seco, pela balsa. “É uma honra servir a alteza”, disse Almeida, um tanto constrangido.
No dia seguinte, sexta-feira, a parada foi em Mogi das Cruzes. Coube ao capitão-mor Francisco de Melo o papel de anfitrião do grupo. Enquanto a comitiva estava ali, uma delegação em nome do governo da Província de São Paulo chegou, pedindo uma audiência com o príncipe.
Firme em seus propósitos, Pedro negou-se a receber o grupo. Alegou que, como o governo estava deposto, não poderia considerar ninguém que viesse como representação oficial deste.
No Paço da Câmara de Mogi, houve nova rotina de despachos. Ali, Pedro substituiu o governador de armas de São Paulo — saiu o marechal José Arouche de Toledo Rendon, que havia solicitado dispensa, e entrou o também marechal Cândido Xavier de Almeida e Sousa.
Peça a peça, Pedro parece estar reorganizando o tabuleiro do xadrez político paulista. O próprio príncipe destacou que Almeida e Sousa é um homem de “amor à causa brasílica”.
No dia seguinte, a comitiva já estava muito perto de São Paulo, no povoado de Nossa Senhora da Penha de França, fundada quase 100 anos atrás. A hospedagem ocorreu na casa do vigário José Rodrigues Coelho.
Enfim, São Paulo
Ali, Pedro realizou as últimas articulações para que tudo estivesse tinindo para sua chegada a São Paulo. Determinou que o ouvidor e corredor da Comarca de Itu, desembargador Medeiros, o encontrasse em São Paulo. E convocou os vereadores eleitos na Câmara de São Paulo, que foram alçados ao posto antes das desordens que acabaram causando a destituição do governo, para que o esperassem às portas da cidade.
Especialmente à tardinha, a vista dali é muito agradável aos olhos de quem pretende chegar a São Paulo. É possível ver a cidade, ao longe. E os raios solares dão um tom especialmente bonito às águas do Rio Tamanduateí. Justamente antevendo o que será o último passo a ser vencido pela comitiva.
Para ter certeza de que tudo transcorreria bem, Pedro enviou naquela noite Canto e Melo e Francisco Gomes até a cidade. “Viemos a fim de observarmos o estado em que ela se achava e podermos prestar exatas informações a respeito”, contou o major. “Regressamos à meia-noite, dando notícias da perfeita quietação em que a tínhamos encontrado.”
Pedro assistiu à missa daquele domingo, dia 25, na igreja da Penha, na parte da manhã. Ainda antes do almoço, a comitiva chegaria a São Paulo, uma cidade de menos de 10 000 habitantes, cheia de construções em taipa de pilão ou pau a pique.
O bispo dom Mateus Pereira e os vereadores receberam a comitiva ainda na ladeira do Carmo. Populares e escravos também observavam, curiosos. “Que moço bonito, apesar das roupas sujas”, comentou uma menina, filha de escravos, sem entender muito bem o motivo de tanta movimentação.
Sob um pálio cuidadosamente preparado, Pedro foi conduzido até a Igreja Matriz, onde assistiu a um Te Deum. Em seguida, deu beija-mão no Paço da Cidade. Ele parecia feliz, confortável.
A partir do dia seguinte, na segunda-feira 26, ele despacharia do Palácio do Governo, no Pátio do Colégio. Graças às articulações feitas nos últimos dias, o governo da província parece estar novamente entrando nos eixos.
Desde então, tem recebido ele diversas autoridades e lideranças, promovido encontros e despachado documentos. A reportagem apurou que ele se negou a receber pelo menos duas pessoas envolvidas nos desentendimentos políticos recentes em São Paulo: Francisco Inácio de Souza Queiroz e Miguel José de Souza Pinto.
Em São Paulo, Pedro hospedou-se no casarão do brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão. No local tem ocorrido uma verdadeira romaria de matronas paulistas ofertando à mesa do príncipe potes e potes de compotas de figo. Se ele se delicia com essas merendas? Aparentemente não. Muitos têm visto um vulto escapulir do velho solar, na calada da noite, atrás, ao que parece, de outros tipos de quitute.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805