Entenda como técnicas mais modernas de tratamento de resíduos da mineração poderiam ter impedido que o distrito de Bento Rodrigues fosse varrido do mapa
Com 317 anos, o distrito de Bento Rodrigues, na cidade mineira de Mariana, tinha história. O vilarejo de 600 habitantes fez parte da rota da Estrada Real no século XVII e abrigava igrejas e monumentos de relevância cultural. Em 5 de novembro, em apenas onze minutos, um tsunami de 62 milhões de metros cúbicos de lama aniquilou Bento Rodrigues. Dez mortes haviam sido confirmadas até a tarde da última sexta-feira e dezoito pessoas continuavam desaparecidas. A onda devastou outros sete distritos de Mariana e contaminou os rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce. Moradores de cidades em Minas e no Espírito Santo tiveram a rotina afetada por interrupções no abastecimento de água. O destino final da lama deve ser o mar do Espírito Santo, onde o Rio Doce tem sua foz. O que causou a tragédia foi o rompimento de duas barragens no complexo de Alegria, da mineradora Samarco. As barragens continham rejeito, o resíduo não tóxico resultante da mineração de ferro.
Eram três as barragens de rejeito em Alegria: a de Germano, a de Fundão e a de Santarém. Todas operavam segundo o sistema de aterro hidráulico, tradicional e empregado em todo o mundo. Ele conta com a ação da gravidade para fazer com que os resíduos separados do ferro escoem até bacias. A parte frontal dessas bacias é feita de areia, para filtrar a água. O Ministério Público de Minas Gerais e a Polícia Civil abriram inquéritos para apurar as causas do desastre, mas uma resposta satisfatória não deve vir antes de seis meses. A principal hipótese levantada pelos técnicos, contudo, é que tenha ocorrido o processo de liquefação, que se dá quando essa camada arenosa externa, em vez de expelir, retém a água. Uma variação brusca na pressão interna do depósito de rejeito pode então transformar areia em lama, que não consegue mais conter os resíduos que estão atrás. Isso explicaria o rompimento da barragem de Fundão — o que arrasou a de Santarém e tudo o mais que havia pela frente. Dois abalos sísmicos de pequena magnitude registrados na região pouco antes da tragédia podem ter acarretado a mudança de pressão na barragem — hipótese que também precisa de comprovação.
É evidente que houve negligência, ou no monitoramento ou na operação do empreendimento”
Carlos Eduardo Ferreira Pinto
Segundo a lei, empresas que exercem atividades com riscos conhecidos, como a mineração, assumem o ônus por eventuais acidentes. Por isso, o monitoramento das barragens é um dos pontos críticos do empreendimento. “Os rejeitos se acumulam, e os engenheiros vão ampliando as estruturas”, diz o professor de geologia de engenharia da USP Edilson Pissato. Há depósitos com 200 metros de altura. O de Fundão tinha 90 metros. Existem técnicas mais modernas para lidar com o rejeito, que usam filtros para garantir sua drenagem. Seus custos podem encarecer a exploração de uma jazida em até seis vezes. “Por isso, as mineradoras acabam assumindo o risco de usar os processos tradicionais”, diz Pissato. A ONG International Commission on Large Dams (Icold) calcula que ocorrem em média dois rompimentos como o de Mariana por ano no mundo.
Além da tragédia humana, o desastre em Mariana teve impacto ambiental difícil de avaliar. O Ibama já aplicou multas preliminares no valor de 250 milhões de reais à Samarco. A mineradora deverá arcar ainda com a indenização às pessoas afetadas e com os custos de reconstrução da região atingida. Na última sexta-feira, a Justiça de Minas bloqueou 300 milhões de reais da conta da Samarco para garantir esses pagamentos. Executivos do setor classificam o evento como o “11 de setembro” do segmento. Todos esperam um endurecimento das regras para as mineradoras. Há um novo Código de Mineração em tramitação na Câmara dos Deputados, e é certo que ele venha a incluir emendas que obriguem as mineradoras a intensificar o monitoramento de suas bacias de rejeito. “Depois de Mariana, ninguém mais vai conseguir licença para construir barragem sem filtro. A sociedade não vai aceitar mais correr esses riscos”, diz o engenheiro e geotécnico Joaquim Pimenta de Ávila. O Brasil abriga cerca de 800 barragens como as que se romperam, liberando a lama que arrastou vidas e patrimônio incalculável em seu caminho.
Com reportagem de Talyta Vespa