Uma lei do barulho
Ainda durante a campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: “Ninguém é contra a cultura, mas a Lei Rouanet tem que ser revista”. A lei, de acordo com ele, deve ser usada pelo “tocador de viola” e pelo “jovem que está começando”. “Não é dar 10 milhões de reais para cantora famosa (…) Essa mamata tem que acabar.” A fala de Bolsonaro ecoa um discurso que se tornou corrente na sociedade: aquele que atrela a Lei Rouanet à ideia de “boquinha”, de “cooptação” e de mau uso do dinheiro público. Na internet, o mecanismo se tornou um dos alvos preferidos de memes e notícias falsas. Algumas críticas são válidas e devem ser feitas. Outras, porém, levam o público à desinformação e ao julgamento equivocado de um mecanismo de incentivo que, em quase 30 anos de existência, contribuiu com mais de 50.000 projetos culturais no país, produzindo um impacto econômico de 49,7 bilhões de reais.
A Lei nº 8.313, criada pelo diplomata e intelectual Sérgio Paulo Rouanet em 1991, não é exatamente o que hoje se chama de Lei Rouanet. A lei promulgada pelo ex-presidente Fernando Collor instituiu, na verdade, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que se baseava num tripé: o Fundo Nacional da Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e, por fim, os incentivos fiscais, que, com o tempo, se tornaram sinônimo de Lei Rouanet.
O FNC deveria, entre outras coisas, estimular projetos de fora do eixo Rio-São Paulo e contribuir para a preservação do patrimônio cultural e histórico; já os Ficart foram idealizados para projetos com capacidade de dar retorno comercial aos investidores; o mecanismo de dedução fiscal, por sua vez, tinha o objetivo de aguçar no empresariado o gosto pelo mecenato, prática cujo nome deriva dos mecenas, homens ricos que, na Renascença, apoiavam as artes. Mas o FNC tem os cofres praticamente vazios, os Ficart nunca saíram do papel e tudo, na cultura, passou a depender do incentivo fiscal.
O que é a lei, afinal?
A lei permite, trocando em miúdos, que empresas e pessoas físicas invistam parte do imposto de renda devido em projetos culturais. As empresas podem aplicar até 4% do IR a pagar na cultura; as pessoas físicas, até 6%. O governo abre mão desses recursos para que eles sejam aplicados numa área considerada essencial para o desenvolvimento do país.
O investimento pode se dar de duas formas. Na mais usual delas (artigo 18), o apoiador abate 100% do valor investido em projetos de artes cênicas, música erudita e instrumental, exposições de artes e livros. Na outra (artigo 26), ele deduz apenas 30% do valor investido, ou seja, a empresa, obrigatoriamente, coloca recursos próprios no projeto. Os apoios a jogos eletrônicos, música popular, fotografia, design e moda estão enquadrados nesse artigo.
Um detalhe importante é que só empresas tributadas com base no lucro real podem usar a lei. Essa regra faz com que sejam excluídos da possibilidade de patrocínio com incentivo fiscal todos os pequenos e muitos dos médios empresários que faturam até 78 milhões de reais por ano e que, salvo exceções, podem aderir ao regime tributário do lucro presumido. Um exemplo de empresa que é invariavelmente tributada pelo lucro real são os bancos.
A escolha dos projetos que receberão recursos
Apesar de ter ganhado fama de ser usada para a cooptação de artistas, a Lei Rouanet foi criada a partir de um princípio liberal. A decisão sobre onde alocar os recursos não está nas mãos do Estado, mas sim nas mãos das empresas patrocinadoras. Ao governo cabe apenas fazer uma avaliação técnica do projeto (documentação, orçamento e objetivos) e encaminhá-lo para a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), formada por 21 membros indicados por entidades do setor. Após a aprovação pela Cnic, a autorização para captação é homologada pelo ministro ou secretário competente. Nos últimos dez anos, entre 2009 e 2018, dos 60.699 projetos aprovados, pouco mais do que a metade, 32.705, conseguiram captar recursos.
Em nenhuma dessas etapas existe análise de mérito. Um projeto pode ser rejeitado por falta de clareza, por não cumprir as normas legais ou por não estar adequado aos objetivos propostos. Mas não porque quem o propôs é famoso ou porque se trata, supostamente, de algo “comercial”. “A Lei Rouanet é um instrumento liberal de gestão cultural. Ela dá autonomia aos agentes de mercado para a destinação de recursos, com mínima interferência do Estado”, resume Carlos Cavalcanti, CEO do Atelier de Cultura, responsável pelos musicais O Homem de La Mancha e Annie, dirigidos por Miguel Falabella.
Cavalcanti enfatiza que a lei não só é transparente – hoje, os dados de captação estão acessíveis a qualquer pessoa, via internet – como impõe uma série de regras. “A Lei estabelece obrigações extremamente rigorosas para o produtor cultural; a utilização dos recursos exige um sério padrão de gestão contábil e financeira”, afirma.
As críticas
Casos famosos, como o do espetáculo do Cirque du Soleil, o livro sobre a cantora Claudia Leitte e o Rock in Rio se tornaram exemplos de desvirtuamento da lei. Em 2006, a companhia circense, apesar de ter captado 9,4 milhões de reais em recursos públicos, cobrou até 370 reais pelos ingressos. Em 2016, a produtora que tem Claudia como sócia foi autorizada a captar 356.000 reais para o lançamento de sua biografia – a aprovação pegou tão mal que a cantora desistiu do projeto. Já a edição de 2011 do Rock in Rio, que obteve autorização para captar 12,3 milhões de reais – tendo obtido 6,7 milhões de reais extras em patrocínio – levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a escrever, num parecer, que projetos com alto potencial lucrativo não deveriam receber incentivos fiscais.
O auge dos escândalos se deu, porém, em 2016, quando a Polícia Federal tornou pública a investigação que apurou desvios de recursos da ordem 180 milhões de reais e que tinha como alvo o grupo dirigido por Antonio Carlos Bellini Amorim, que era totalmente desconhecido no meio cultural e que usou a lei até para pagar o casamento do filho. Bellini chegou a ser preso na investigação apelidada de Operação Boca Livre. No fim do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu, à 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, 27 denúncias contra a empresa do acusado.
O trabalho da PF motivou a Câmara dos Deputados a instaurar, ainda em 2016, uma CPI destinada a investigar a Lei Rouanet. À parte o caso de Bellini, os deputados não descobriram outras falcatruas. Diagnosticaram, porém, várias falhas na lei. O relatório final da CPI recomendou que se criem melhores mecanismos de controle, que a lei seja mais transparente e que se busque uma distribuição menos centralizada de recursos; o relatório registra, no entanto, o consenso em torno de sua preservação. Na esteira da CPI e dos questionamentos públicos, uma Instrução Normativa (IN) de 2017 estabeleceu, por exemplo, a exigência de que 30% dos ingressos de produções viabilizadas com a lei sejam gratuitos e que 20% tenham um valor médio de até 75 reais.
“Eu credito muito do ambiente refratário à lei ao enorme passivo de projetos à espera da análise no Ministério”, diz Sérgio Sá Leitão, ex-Ministro da Cultura, referindo-se ao acúmulo de projetos à espera de análise de prestação de contas ao longo dos anos e ao próprio excesso de trabalho dos pareceristas. “Se a prestação de contas fosse avaliada, um escândalo como esse do Bellini não teria acontecido. Ainda temos um passivo de 15.000 projetos para serem analisados, mas há dois anos não geramos mais passivo, ou seja, todos os novos projetos são analisados.” A fragilidade dos mecanismos de controle na prestação de contas se deve não só à falta de pessoal, mas também às próprias minúcias do processo, que implica, entre outras coisas, em fornecimento de notas fiscais para cada centavo gasto. Desde o ano passado, vem sendo implantado um sistema de controle digital, que deve tornar mais eficaz o trâmite.
Outros problemas são a concentração em projetos das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro – em especial, em uns poucos bairros dessas duas cidades – e a concentração em grandes proponentes: apenas 3% de todos os proponentes ficam com metade dos recursos captados e 80% do dinheiro da lei fica no Sudeste. Em 2018, por exemplo, dos 3.220 projetos que captaram recursos, 1.801 eram dessa região – já no Norte, apenas 37 conseguiram captar.
Além disso, é tênue a linha que separa os objetivos de marketing das empresas dos objetivos culturais – apesar de o artigo 26 prever a contrapartida de dinheiro do próprio patrocinador, até 2015, de cada 10 reais investidos, 9,50 reais tinham origem pública. Ou seja, o propósito inicial da lei, que era contribuir para a criação do hábito do mecenato, passou longe de ser cumprido.
Apesar de terem sido “renovadas” no último ano, especialmente durante as eleições, e até por parte de políticos que hoje integram o governo de Jair Bolsonaro, as críticas à Lei Rouanet remontam ao início do governo Lula. A concentração regional e a maior facilidade de captação entre artistas “consagrados” eram alguns dos defeitos apontados pelo então secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira, já em 2003. Em 2005, o MinC trouxe a público as primeiras propostas de mudança no mecanismo e, desde 2010, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que substitui a Lei Rouanet pelo Procultura, que limita os 100% de isenção e direciona parte dos recursos do mecenato para o FNC. Esse projeto, que sempre enfrentou oposição, foi desconsiderado pelo governo Michel Temer e é, na prática, impossível que seja retomado pelo novo governo. O mais provável, pelo que se apurou até agora, é que o governo Bolsonaro acabe por fazer apenas ajustes na lei.
“É correto afirmar que a lei deve ser aprimorada e atualizada, mas a sua extinção seria dramática, levando o mundo da cultura a uma grande crise”, pondera Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural. Hoje, o Instituto é mantido com recursos próprios e o banco usa a lei para apoiar projetos de terceiros. “Grandes museus e eventos culturais relevantes, na sua maioria com bilheteria gratuita ou a preços populares, só são possíveis graças aos recursos que a lei injeta no sistema cultural brasileiro.”