As bênçãos de Shiva
O hinduísta Narendra Modi foi reeleito, segundo os primeiros resultados da apuração divulgados
Por Florência Costa, de Nova Délhi
Sentado com as pernas cruzadas na famosa posição de lotus, olhos fechados, coberto com um xale laranja, a cor do desapego para os hinduístas, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, 68 anos, passou a noite do sábado 18 meditando na caverna sagrada de Kedarnath, nos Himalaias, a quase 4.000 metros de altitude.
A caverna fica a 1 quilômetro de um templo em homenagem a Shiva, a divindade hindu que simboliza a destruição e um novo começo. Como é habitual no hinduísmo, o primeiro-ministro fez suas oferendas ao deus – leite, mel, manteiga clarificada e iogurte – para destruir os seus obstáculos.
No dia seguinte, o maior expoente da direita nacionalista religiosa indiana recebeu sinais de que suas preces foram ouvidas. Modi é o terceiro político indiano a conquistar um segundo mandato, depois de Jawaharlal Nehru, que assumiu logo depois da independência da Índia, e de Indira Gandhi, filha de Nehru e avó de principal rival nestas eleições, Rahul Ghandi.
O Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata ou BJP), de Modi garantiu 300 cadeiras no Parlamento indiano, ultrapassando facilmente o mínimo de 272 assentos para compor a maioria. O Partido do Congresso, maior oponente do BJP, não conseguiu nem mesmo eleger seu presidente, Rahul Gandhi, que perdeu no distrito de Amethi para a atual ministra dos Tecidos, Smriti Irani, uma ex-modelo e atriz que tornou-se uma das principais colaboradoras de Modi.
“O povo elegeu Modi primeiro-ministro, e eu respeito isso”, declarou Gandhi, ao reconhecer sua derrota.
A vitória de Modi era esperada desde o último final de semana, quando foram divulgadas as primeiras pesquisas de boca de urna. Motoristas de riquixás – considerados termômetros da opinião popular – dançaram e beberam, felizes com os resultados. Dilip, que ganha a vida dirigindo um riquixá-bicicleta em Defence Colony, bairro rico da capital indiana, estava entre eles.
“Gosto do Modi porque ele trouxe eletricidade para os vilarejos do meu estado, fez estradas e construiu banheiros. Isso nunca aconteceu antes. Os outros partidos não tem planos para pessoas como eu”, disse Dilip, nascido em um dos estados mais pobres da Índia, Bihar.
Índia para os hindus
Ao meditar na caverna dos Himalaias, Modi jogou com o simbolismo da religião de 80% dos indianos: o hinduísmo. O BJP de Modi reza pela cartilha da chamada Hindutva, ideologia que procura estabelecer a hegemonia dos hindus e do modo de vida hindu em uma Índia plural. O primeiro-ministro é uma liderança da direita populista e sabe cultivar sua imagem de homem forte e, ao mesmo tempo, de defensor dos pobres e das pessoas de castas baixas.
Modi escolheu Varanas, a cidade mais sagrada para os hindus, na beira do Rio Ganges, como seu distrito eleitoral. Cada um dos integrantes do parlamento representa uma área geográfica. É por Varanasi, uma Jerusalém na imaginação dos hindus mais pios, que ele disputa uma vaga no parlamento.
A mitologia conta que foi em Varanasi que o sábio Vyasa ditou o épico Mahabharata para o deus Ganesha, aquele com cabeça de elefante e corpo de menino, o grande destruidor de obstáculos do panteão das divindades hindus.
Esta foi uma das disputas mais ácidas dos últimos tempos. Rahul Gandhi, presidente do Partido do Congresso, principal rival do BJP de Modi, chamou o primeiro-ministro de “Chor” (ladrão) e Modi retrucou dizendo que o pai de Rahul, o ex-primeiro-ministro Rajiv Gandhi, assassinado em um atentado terrorista em 1991, foi o “corrupto número 1” da Índia.
Os adversários de Modi o acusam de dividir a Índia, de ser autoritário, de ameaçar a independência das instituições e de atacar intelectuais e universidade. Também acreditam que ele acalente planos para consolidar uma nação hindu com pouca tolerância com as minorias e para os que não seguem a cartilha do hinduísmo militante. Nos últimos cinco anos, por exemplo, ocorreram vários casos de linchamento de muçulmanos e indianos de casta baixa por terem comido carne de vaca, animal sagrado para os hindus.
Com o uso indiscriminado das mídias sociais como arma de ataques violentos pelos líderes partidários que disputam o poder deste emergente asiático, a eleição indiana parece ter reeditado a versão do século 21 da sangrenta guerra entre primos contada no milenar épico Mahabharata: os Kauravas e os Pandavas, que disputavam o poder. No final, os Pandavas venceram.
A guerra eleitoral chegou até o líder pacifista Mahatma Gandhi (1868-1948). O “Pai da Nação” foi morto a tiros por Nathuram Godse, integrante de um movimento extremista hindu que mantém laços com o BJP de Modi, o Rashtriya Swayamsewak Sangh (RSS). Os radicais hindus rejeitam as ideias e o exemplo de Ghandi, que defendeu o direito de todas as minorias religiosas, como a dos muçulmanos, em uma Índia secular.
Radical hindi, Pragya Singh Thakur, candidata a deputada pelo BJP, chamou o assassino de Gandhi de “patriota”. Ela é uma Sadhvi, ou seja, é considerada uma mulher santa do hinduísmo. No passado, porém, foi acusada de envolvimento em atentados terroristas contra alvos muçulmanos.
Na terra onde nasceu o conceito de Ahimsa – a não-violência radical praticada por Mahatma Gandhi -, o histórico de violência política é longo. A mistura de política com religião na Índia sempre foi explosiva.
Flor de lotus versus palma da mão
Esta foi a 17ª eleição geral da história da Índia, o segundo país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes. Os indianos escolheram 543 dos 545 integrantes da Lok Sabha, a Câmara dos Deputados, e, com isso, definiram o líder que governará o país até 2024. O partido que tiver a maioria das cadeiras do parlamento, indicará o primeiro-ministro. Se nenhuma legenda conseguir esse feito, uma coalizão de partidos nomeará o novo governante.
A eleição começou no dia 11 de abril e terminou no domingo 19. O resultado oficial será anunciado nesta quinta, 23 de maio. O equivalente a um oitavo da humanidade – 879 milhões de pessoas – estavam aptos a votar. Embora não obrigados a ir às urnas, o comparecimento atingiu entre 65 e 70%, o que demonstra a fé dos indianos na sua gigantesca democracia.
Os números da eleição foram gigantesco. O processo envolveu 1 milhão de postos de votação e 11 milhões de funcionários públicos. A Comissão Eleitoral chega a usar até elefantes, camelos, burros, carros de boi, barcos, helicópteros para levar as urnas aos lugares mais inóspitos.
Os indianos votaram em urnas eletrônicas, das quais retiram o comprovante impresso de seu voto. Em um país com 266 milhões de analfabetos, a tela da urna eletrônica exibiu, ao lado dos nomes dos candidatos à Lok Sabha, os dos seus partidos com seus símbolos.
A flor de lotus, símbolo sagrado no Hinduísmo, representou o BJP de Modi. A palma da mão simbolizou o Partido do Congresso. Um elefante azul foi o ícone do Bahujan Samaj, Partido da Maioria do Povo, que representa os Dalits, a categoria mais oprimida do sistema de castas da Índia e considerada intocável.
Depois de votar, o eleitor teve seu dedo indicador pincelado de tinta para evitar que votesse uma segunda vez.