Obra de Monteiro Lobato cai em domínio público e já terá novas edições
A proteção aos direitos é válida por 70 anos e termina a partir do primeiro dia do ano seguinte - como Lobato morreu em 1948, os direitos terminaram agora
Desde o dia 1º de janeiro, a obra de Monteiro Lobato está em domínio público, ou seja, os direitos autorais não mais pertencem exclusivamente aos descendentes.
Isso acontece porque a proteção aos direitos é válida por 70 anos e termina a partir do primeiro dia do ano seguinte – como Lobato morreu em 1948, aos 66 anos, os direitos terminaram agora. Assim, é permitida a publicação da obra por qualquer editora, o que já resultou em um plano diversificado de edições. Dentre todos os projetos, o mais ambicioso foi assumido pelo também escritor Pedro Bandeira, exímio conhecedor da obra lobatiana e que está ambientando para o século 21 as brincadeiras e ensinamentos da turma do Sítio do Picapau Amarelo.
“Minha adaptação protege o talento de Lobato”, assegura. “Autores geniais como Perrault, Andersen, Dumas ou Shakespeare têm sido adaptados sem parar. No caso de Lobato, quase toda sua linguagem e humor devem ser preservados e foi o que fiz. Mas tenho de mexer um pouquinho em detalhes como os xingamentos da Emília. Na época de Lobato, isso poderia parecer engraçado; hoje, porém, é um absurdo. Sua obra não perderá a qualidade se tirarmos, aqui e ali, xingamentos acachapantes como ‘sua negra beiçuda'”.
Acusações de racismo, aliás, vêm figurando em diversas discussões sobre o texto de Lobato, especialmente o direcionado ao público infantil. Bandeira faz uma contextualização. “Em muitos de seus artigos para jornais e em suas cartas, ele demonstrou-se um ardoroso racista, um eugenista de marca maior, um cultor da superioridade dos eurodescendentes. Logo ele, que era baixinho, franzino e feio como a mãe da peste”, diverte-se Bandeira. “Na primeira metade do século 20, quem negasse diferenças entre africanos, chineses e europeus seria chamado de maluco.
Todo mundo acreditava em diferenças raciais, em ‘superioridades’ e ‘inferioridades’, até a ciência. A magia de Lobato, sem seus pequenos deslizes racistas, é imensa e é isso que sonho preservar para as próximas gerações, para que se encantem como eu”.
Pedro Bandeira faz questão de citar um detalhe que passa despercebido: Narizinho tinha a pele negra. Afinal, Lobato a descrevia como “uma menina de 7 anos, com a pele da cor do jambo”. “O jambo é vermelho-escuro, mais escuro que uma ameixa”, observa ele, irritado com a imagem disseminada a partir dos desenhos de Voltolino que, na capa de A Menina do Narizinho Arrebitado, de 1920, cria uma Narizinho “como uma inglesinha gorducha e loura feito uma espiga de trigo”.
É essa personagem, aliás, que, aos 7 anos, fascina Bandeira, justamente por não ser mais uma criança tampouco uma pré-adolescente. “É uma idade de transição, em que o ser humano é solitário e se alimenta de sua prodigiosa imaginação. Nessa idade, as meninas falam com suas bonecas e elas respondem”. Por outro lado, o escritor não esconde sua antipatia por Pedrinho, o menino que vivia na cidade grande e que passava férias no sítio.
“Acho que Lobato não gostava dos meninos”, comenta Bandeira. “Pedrinho nada traz da vida urbana, nada acrescenta, não fala de tecnologias, de progressos que não existiriam no sítio. Aliás, ele se porta como se sempre tivesse vivido no campo – sabe construir arapucas para passarinhos e vive com seu bodoque a dar ‘botocadas’ a torto e a direito”. Bandeira nota que a postura do personagem é a de um “machinho agressivo”. “Ele chega no sítio e mergulha direto nos sonhos da prima. Nenhuma das aventuras proveem de sua imaginação. Em O Saci, ele é apenas um ouvinte das narrativas folclóricas do menino de uma perna só. Em Caçadas de Pedrinho, o protagonismo o tempo todo é de Emília. Aliás, esse é um livro que eu não ofereceria às crianças”.
Personalidade de múltiplas facetas, movido por sonhos e utopias, Monteiro Lobato era um homem que tomava partido sobre todos os assuntos polêmicos de sua época, defendendo suas posições em cartas e artigos que publicava na imprensa, sobretudo no Estado. Assim, Bandeira engrossa o coro dos que criticam o prazo de 70 anos para o domínio público. “A obra de Lobato estaria tendo uma sobrevida muito melhor se já se pudesse estar mexendo nela há duas ou três décadas”.