‘A Menininha do Hotel Metropol’: lembranças do horror stalinista
Em devastador volume de memórias, Liudmila Petruchévskaia narra as provações de pertencer a uma família tida como “inimiga do povo”
Construído entre o fim do século XIX e o começo do século XX, o Hotel Metropol é um luxuoso e artisticamente vanguardista marco da região central de Moscou — onde resplandece até hoje. Após a revolução comunista de 1917, foi convertido em residência de um sem-número de famílias bolcheviques, entre as quais os parentes da então pequena Liudmila Petruchévskaia. Mas, como tantos intelectuais prestigiados na fase inicial da revolução, os pais da garota cairiam em desgraça no regime do ditador Josef Stalin (1878-1953). A família teve de abandonar o hotel, anátema que levou a jovenzinha Liudmila rumo a trágicas peregrinações por orfanatos e ao olho da rua. Uma das maiores escritoras da Rússia de hoje, ela narra as memórias desse período de provações, entre as décadas de 40 e 50, no devastador A Menininha do Hotel Metropol.
O título do livro, que chega às lojas no próximo dia 15, contém uma dolorosa ambiguidade: o mesmo hotel cosmopolita que inicialmente acolheu os partidários e sonhadores da utopia internacionalista acabaria por desabrigar os órfãos da revolução, como a “inimiga do povo” Liudmila — cuja obra, composta de mais de quinze livros, além de peças de teatro encenadas mundo afora, seria censurada na Rússia até o fim da década de 90. Como um alento que, ainda assim, não cicatriza as feridas de uma vida açoitada pela história, a autora foi laureada, em 2002, com o mais prestigioso prêmio literário russo, o Triumph, pelo conjunto de sua obra.
Para Liudmila, as fraturas da história e as feridas da memória são as duas faces da moeda que ela precisava mendigar ou os dois gumes da faca que ela sempre sentiu rente ao saquinho de ossos de seu corpo, desde a mais tenra infância. “Eu encarava a fome com facilidade, nós já passávamos fome havia muito tempo, minha avó tinha uma barriga-d’água enorme, inchada, ainda que minha tia dissesse que ela às vezes ia ao porto quando estavam descarregando, e, em troca de trabalho, davam para a vovó uma garrafa de álcool desnaturado, que podia ser trocado por pão”, escreve ela, com sua prosa seca e cortante.
Com idas e vindas que subvertem o fluxo linear do tempo e nos fazem sentir a atmosfera aterrorizante da vida sob Stalin, Liudmila revela como eram as noites insones rasgadas pela covardia e truculência dos agentes da ditadura. Eles apareciam, abruptamente, para prender uma legião de inocentes desgraçados: “Toda noite minha avó escutava um barulho, como se um carro estivesse parando em algum lugar ao longe; a porteira se abria e se escutavam com muita clareza passos pelo cascalho. Naqueles anos vinham pegar as pessoas justamente à noite, lacravam os apartamentos, e ninguém nunca mais as via. Na época, a condenação ao fuzilamento recebia o nome suave de ‘dez anos sem direito a correspondência’ ”.
Diante de uma foto de sua família outrora reunida, aparentemente em 1912 — antes, portanto, da revolução e da reversão da utopia em distopia —, a autora chora ao vislumbrar o cadafalso da história: “Como eu queria não saber o futuro deles”.
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Sobreviver aos julgamentos com cartas marcadas, fuzilamentos e expurgos sumários significava a possibilidade de retomar o curso normal da vida? Mais uma vez, aqui, Liudmila Petruchévskaia expõe o caráter insidioso do arbítrio stalinista: “ ‘Inimigos do povo’ não era uma expressão vazia, éramos inimigos dos vizinhos, da polícia, dos chefes, dos zeladores, dos passantes, dos habitantes de todas as idades de nosso prédio. Não nos deixavam entrar no banheiro, lavar a roupa, nem sabão tínhamos”.
Seria bem factível imaginar que a jovem Liudmila, abatida pela tragédia, jamais conseguiria se reconciliar com a vida, acabando exaurida pela pobreza, pela loucura e, no limite, pelo suicídio. Mas, como a composição de A Menininha do Hotel Metropol bem demonstra, a criança e a adolescente lograram redefinir o sofrimento excruciante, de modo a superá-lo com um ímpeto de leitura radicalmente voraz — diante da impossibilidade da vida livre, a ficção e a imaginação configuravam o único e último refúgio. E também com o errante, e a princípio hesitante, reconhecimento de si como escritora. Liudmila se permite até mesmo sorrir diante de seus dissabores, como no trecho em que se lembra de que o poeta Vladimir Maiakovski (1893-1930) chegara a flertar com sua bela avó Valentina, entusiasmada como o artista pelos rumos iniciais da revolução. “A vovó também tinha as obras completas de Maiakovski em um tomo. Provavelmente, como lembrança de que na juventude ele fora apaixonado por ela e a chamava de Duquesa Azul”, narra.
Entre os escombros de sua memória, Liudmila extrai um belo aforismo: “Aí está a questão da felicidade da vida, especialmente uma felicidade aguda: ela é conquistada pela privação, não importa quão severa. E só a separação cria a possibilidade de um encontro inimaginável”. A literatura de Liudmila Petruchévskaia jorra de um amálgama tão raro quanto belo de sofrimento e purgação, fratura e perdão. É como se a autora sussurrasse no ouvido do leitor: a mão que foi ferida é a mesma que pode se recordar, escrever — e, quem sabe, curar.
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669
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