Universidades no Brasil e no mundo viram palco de disputas ideológicas radicais
O maior exemplo da polarização no país ocorre na Universidade de Brasília, em meio a uma ruidosa polêmica entre grupos de alunos de direita e de esquerda

Fenômeno global, a polarização ultrapassou a fronteira da disputa política e se estendeu para diversas áreas, da cultura à vacinação. Em várias partes do mundo, embates de cunho ideológico estão avançando agora sobre uma nova frente: os centros de produção de conhecimento. Donald Trump, por exemplo, suspendeu o repasse de recursos à Universidade Columbia diante dos protestos no campus contra Israel, aliado do presidente americano. Na última segunda, 14, o governo dos Estados Unidos anunciou o congelamento de 2,2 bilhões de dólares de subsídios anuais e 60 milhões de dólares em valor de contrato anual da Universidade Harvard depois que a instituição rejeitou uma carta da administração republicana exigindo a eliminação dos programas de diversidade, equidade e inclusão.
No Brasil também começam a surgir disputas do tipo em grandes instituições. Em São Paulo, a política de cotas da Unicamp para pessoas trans, travestis e não binárias está sendo contestada por políticos e movimentos de direita. Numa frente, um vereador ajuizou uma ação popular para impedir a implementação desse programa. Em outra, manifestantes desferiram ataques virtuais contra a universidade, além de protestarem em suas dependências. O embate não para por aí. Alinhada ao ex-presidente Jair Bolsonaro, a produtora Brasil Paralelo acaba de lançar um documentário em que tenta expor a doutrinação ideológica nas universidades. Doutrinação de esquerda, obviamente.

Na história do Brasil, o caso mais grave de conflito no ambiente universitário ocorreu durante a ditadura, quando estudantes da Universidade Mackenzie, favoráveis ao regime, e da USP, contrários ao governo, entraram em conflito na Rua Maria Antônia, em São Paulo, numa batalha que resultou em uma morte. Desde a redemocratização, nada parecido a isso ocorreu, felizmente, mas os ânimos estão cada vez mais acirrados no mundo acadêmico. O maior exemplo disso na atualidade ocorre na Universidade de Brasília, uma das mais tradicionais do país. Ela se encontra em meio a uma ruidosa polêmica entre grupos de alunos de direita e de esquerda.
Fundada no início da década de 1960, a UnB tem um papel reconhecido na resistência à ditadura. Durante o regime, tropas invadiram seu campus e perseguiram professores e alunos. Um deles, o líder estudantil Honestino Guimarães, acabou desaparecendo após ser preso nos anos 1970 e só teve a morte reconhecida em 1996, graças a uma decisão judicial. Seu corpo nunca foi encontrado. No ano passado, a UnB entregou um diploma de conclusão de curso à família de Guimarães, cinco décadas após o desaparecimento dele. Foi um ato simbólico de uma instituição historicamente associada ao campo progressista, mas que passou a lidar nos últimos tempos com uma contestação interna barulhenta e de forte apelo nas redes sociais, bem alinhada à cartilha de direita.
Essa espécie de contraofensiva é comandada por Wilker Leão de Sá, aluno do curso de história e ex-cabo do Exército, que passou a gravar as aulas a que assiste na universidade para provar que os docentes doutrinam os estudantes a seguirem a ideologia de esquerda e abraçarem pautas identitárias. “A professora estabelece como leitura obrigatória um texto em que a autora esquerdista diz: ‘devemos combater o patriarcado racista cis-heteronormativo neoliberal’. Aí, eu desafio qualquer um deles a me provar que ao menos sabe o que é o neoliberalismo, e todos fogem”, afirma Sá, um autoproclamado militante de direita, em vídeo divulgado em seu canal no YouTube, que tem 922 000 inscritos. Diante da repercussão das postagens, grupos de professores e alunos passaram a acusar Sá de realizar gravações sem autorização, de editar falas para tirá-las de contexto e de incitar o ódio a integrantes da comunidade acadêmica.

Em dezembro do ano passado, a UnB decidiu suspendê-lo por sessenta dias apenas de duas disciplinas, sob o argumento de que ele estaria atrapalhando o andamento das aulas. De nada adiantou. Vencido o prazo, Sá fez questão de gravar um vídeo de seu retorno ao campus no exato momento em que colegas de esquerda protestavam contra ele, num ato que contou com a presença da reitora da UnB, Rozana Naves. Com a câmera em punho e vestindo uma camisa da seleção brasileira, ele se dirigiu aos manifestantes com termos como “alunes” e “vagabundes” e tentou abordar alguns deles, mas foi expulso do local em meio a empurra-empurra e gritos de “recua, fascista”. Conseguiu o que queria e passou a se declarar vítima da perseguição e da intolerância dos rivais, especialmente depois que a reitoria, no fim de março, suspendeu-o de novo por mais sessenta dias, proibindo-o de frequentar as dependências da UnB, alegando que ele expõe professores de forma descontextualizada para ganhar dinheiro nas redes sociais. “A medida cautelar não se relaciona a posicionamentos políticos ou ideológicos do estudante. A UnB reafirma seu compromisso com a integridade da comunidade universitária e com a construção de um ambiente de convivência respeitosa, democrática e plural”, declara a universidade em nota enviada a VEJA. Em vez de conter, a punição deu tração à confusão. Sá e outros alunos de direita da UnB realizaram no início do mês um ato para “livrar a UnB do comunismo” e conseguiram o apoio de políticos locais. “Algo grave ocorre na UnB, de forma explícita e criminosa, inclusive com incitação ao crime contra nomes de direita. E isso não pode se perpetuar”, afirma o deputado distrital Thiago Manzoni (PL).
Especialista no assunto e doutorando em psicologia social com ênfase em educação na Columbia, Pedro Franco afirma que a polarização nas universidades tem de ser tratada não como problema político, mas pedagógico. “A questão central não é como despolarizar o campus, mas como proporcionar uma educação de qualidade para alunos e professores, que estão tendo cada vez mais dificuldade em discordar, em considerar pontos de vistas diversos”, afirma. Sem estímulo ao contraditório, as universidades tendem a produzir cada vez menos conteúdo — e cada vez mais embates estéreis entre adversários políticos. Assim, o que deveria ser um farol do conhecimento corre o risco de se transformar em uma triste babel política.
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940