Organização nota zero: o Enem segue cercado de incertezas
Para aflição dos estudantes, a esta altura do ano o exame tem indefinições inclusive em relação à data. E desta vez a culpa não é do vírus
Parece reprise de novela ruim. O ano avança e milhões de jovens aguardam ansiosos o anúncio da data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), passaporte de entrada para a imensa maioria das universidades brasileiras. Foi assim em 2020, quando a pandemia se alastrava e uma nuvem de indefinições instaurou-se sobre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o órgão do Ministério da Educação responsável pela prova. Ela normalmente ocorre em novembro e acabou sendo aplicada em janeiro. Agora, o repeteco do folhetim que tanto angustiou a garotada soa menos compreensível — até porque o atraso, desta vez, não tem a ver com o vírus, mas com a completa desorganização na colossal engrenagem por trás do exame. Estudantes em busca de informações básicas, como os dias de inscrição e o edital, não as encontram no site oficial porque elas inexistem. “Como é o segundo ano da pandemia, o governo já deveria estar preparado. É complicado planejar os estudos assim”, diz Rodrigo Tragante, 16 anos, que sonha com o curso de direito.
Enquanto a ampulheta corre, o Inep vive dias de fervura máxima. Um dos gargalos é o orçamento: até agora, só 200 milhões de reais dos 800 milhões necessários para arcar com a realização da prova foram liberados pelo governo federal. É um baque, já que essa fração cobre apenas o planejamento, e não etapas como confecção do exame, definição dos locais para sua aplicação e contratação de gráfica. Muito se especula sobre a data, que, enquanto não sai, emperra todo o resto. Mas sem o dinheiro garantido não é possível dar a largada — e tudo indica que o Enem 2021 está mais para 2022. “Para ser em novembro, a esta altura a gráfica tinha de estar contratada e a prova, elaborada”, frisa Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep e uma das maiores especialistas no exame.
Documentos internos revelam que os técnicos trabalham com os dias 9 e 16 de janeiro de 2022 — o que Danilo Dupas, há dois meses no comando do Inep, também sugeriu, de forma vaga, em reunião do Conselho Nacional de Educação, na quinta-feira 13. O ministro Milton Ribeiro logo correu para pôr panos quentes diante da grita geral, afirmando ser essa apenas uma das hipóteses. Fato é que, até este momento, o formulário para pedir isenção da taxa de inscrição é o único sinal de vida concreto do Enem.
O roteiro de trapalhadas conduz ao ministro da pasta, Milton Ribeiro, a quem se responsabiliza nos bastidores por decisões que acabaram por emperrar o processo. Uma delas foi trocar o presidente do Inep em março, quando a força-tarefa do Enem já deveria estar a toda: saiu Alexandre Lopes, apontado à boca pequena pelo ministro como o culpado pelo fiasco da tumultuada (e aglomerada) edição de 2020, e entrou Dupas, que ocupava uma secretaria do MEC e só agora está se familiarizando com os fundamentos do exame. Homem de confiança do ministro, recai sobre ele a suspeita de ter dado o aval para um relatório evasivo sobre um possível vazamento de informações oficiais da avaliação de um curso de uma universidade em Londrina, a Unifil — caso que a Polícia Federal investiga. Ao assumir o leme do Inep, Dupas substituiu quadros experientes em cargos de chefia por gente nova que começa vagarosamente a tomar pé da situação. “Houve preferência pela nomeação de cidadãos sem o mínimo conhecimento científico e de métricas educacionais”, dispara Marcus Vinícius, ex-presidente do Inep e apoiador de Bolsonaro. Na segunda-feira 17, até o conselho consultivo do órgão ganhou um integrante sem estrada na educação, o Tenente Coimbra, deputado estadual de São Paulo (PSL).
O Enem é a ponta mais visível do desmantelamento gradual de um instituto que, criado em 1937, converteu-se em valioso produtor de estatísticas sobre a sala de aula — um balizador para não se fazer política às cegas. Uma peça hoje ali paralisada é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), justamente o indicador que monitora o nível dos alunos e serve de bússola para a distribuição de verbas. Pois também aí faltam recursos — os quais Ribeiro tenta reaver batendo à porta do ministro Paulo Guedes. Mesmo pendurado em problemas, o Inep, que não respondeu à reportagem de VEJA, ainda perde tempo precioso enredado em questões ideológicas. Se no Enem passado causou incômodo ao presidente Bolsonaro uma pergunta acerca do desequilíbrio salarial entre homens e mulheres, agora a atual diretoria faz de tudo para dificultar a publicação de um artigo sobre a eficácia de um programa de alfabetização da gestão Dilma Rousseff — o Ministério Público Federal até pediu ao órgão dados para apurar se houve censura. Mais produtivo seria correr para sanar a dúvida que tanto atormenta os 6 milhões de jovens que farão o Enem: quando será o exame, ministro?
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739