Exame reprovado: Enem tem angústia entre estudantes e abstenção recorde
O governo bateu o pé e confirmou a data das provas mesmo com a curva pandêmica subindo. Deu no que deu
Nos doze meses em que nada foi como antes, a vida estudantil mudou radicalmente, impondo a crianças e jovens o desafio de se adaptar de uma hora para outra ao ensino remoto. Para quem estava prestes a enfrentar o exame de ingresso na universidade, passaporte para uma fase decisiva, a tensão se elevou. E governos mundo afora se amoldaram à nova realidade, ajustando seus sistemas e calendários. Nos Estados Unidos, o quase centenário SAT deixou de ser obrigatório em mais de 500 instituições. A China chegou a suspender o Gaokao, o maior vestibular do planeta, que só seria aplicado depois que os casos de Covid-19 despencaram. No Brasil, mesmo com a curva pandêmica elevada, o Ministério da Educação não arredou pé da data marcada para o Enem lá atrás, em meados de 2020, quando o vírus parecia arrefecer. E deu no que deu nas provas deste janeiro em que a pandemia ainda grassa: abstenção recorde. Mais da metade dos inscritos (3 milhões de um total de 5,5) não compareceu.
A paralisia do MEC diante de um mundo posto do avesso se revelou desde os primórdios da eclosão do vírus, quando o então ministro Abraham Weintraub insistia na permanência do Enem em novembro, a data de sempre. Acabou, porém, tendo de ceder ao clamor das redes e à pressão do Congresso, e lançou uma consulta pública com três datas à mesa. Venceu maio de 2021, mas o governo cravou janeiro, para não atrasar o ano letivo. No que a prova se aproximava e o novo coronavírus seguia em alta, o assunto voltou à baila, com a própria defensoria da União pedindo na Justiça o adiamento do teste e dezenas de instituições lideradas pela Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência enviando uma carta ao atual dono da pasta, o ministro Milton Ribeiro. Não adiantou. Amparado por decisões judiciais, o Inep, órgão do MEC que toca a prova, pôs o Enem na rua. “Os números de ausência mostram que a decisão foi equivocada”, diz Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep nos tempos em que os faltosos giravam em torno de 25%.
Nos dois dias de exame, 17 e 24 de janeiro, medidas sanitárias foram aplicadas — uso obrigatório de máscara, distribuição de álcool em gel e mais locais para a realização da prova. Mas as aglomerações aconteceram e, aliadas à falta de informação, tornaram este Enem particularmente angustiante. A contabilidade oficial indica que em 37 pontos, especialmente na Região Sul, alunos chegaram a ser impedidos de fazer o teste, dado o excesso de candidatos, número que ainda pode subir. “Fiquei desesperada, perdida”, resume a gaúcha Kayane Vieira, 18 anos, uma entre os barrados. A catarinense Larissa Felizardo, 19 anos, conta que, bem no meio do exame, fiscais pediram aleatoriamente para alguns candidatos trocarem de sala. “E olha que temos três minutos para responder cada questão”, frisa. Aquele que se sentiu prejudicado teve dificuldades para fazer a queixa chegar a quem deve. O máximo que o Inep informa é que todos, seja por questões logísticas ou de saúde e munidos de atestado, poderão realizar o Enem em 23 e 24 de fevereiro.
Nos bastidores, fala-se que toda a confusão resultou do conhecido pendor negacionista do Planalto em relação ao vírus, somado à perda de relevantes quadros técnicos do Inep desde maio de 2019, quando Alexandre Lopes assumiu a presidência do órgão. Neste Enem tão atípico, só o presidente Jair Bolsonaro seguiu o roteiro previsível, queixando-se do conteúdo de uma questão que comparava os salários de Marta e Neymar. “O futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil”, disparou para uma plateia à porta do Palácio da Alvorada. Enquanto isso, apenas 21% dos brasileiros têm um diploma universitário, entre as piores taxas do mundo. Sinal de que não dá para ficar parado. “O MEC deveria aplicar um novo exame no meio do ano para quem se ausentou”, sugere Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, junto a outros especialistas. Fica a ideia.
Com reportagem de Thaís Gesteira
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723