Crianças aprendem a mentir em casa, e isso pode prejudicá-las no futuro
Estudos mostram que pequenos são incentivados pelos pais a contar inverdades. Essa postura afeta a formação de seu caráter
A criança abre o presente de aniversário e não disfarça a imensa decepção: “Roupa? Eu gosto é de brinquedo”. Ou então, ao perguntarem se a priminha não é linda, uma gracinha, responde: “Eu acho ela feia”. Episódios como esses, naturalíssimos na fase em que as habilidades sociais ainda não estão desenvolvidas, são motivo de constrangimento para os pais — que normalmente reagem ensinando os filhos a falar as coisas que os adultos querem ouvir. Ou seja: a mentir. A questão é que esse tipo de atitude, mais do que comum e considerada inofensiva, pode, sim, ter reflexos na formação dos pequenos e influir na integridade de seu caráter depois de amadurecidos.
Impulsionados por pesquisas confirmando a onipresença de tal comportamento nas famílias, especialistas cada vez mais enfatizam a importância da reação correta diante das verdades inconvenientes das crianças — dialogar e explicar, em vez de escamotear a realidade. “A honestidade não é uma característica inata, mas aprendida no processo de socialização. Se queremos criar crianças honestas, precisamos ser o exemplo”, diz a psicóloga Ioana Yacalos, especialista em desenvolvimento humano.
“O homem é hostil para com as verdades que podem ser prejudiciais e destrutivas.”
Friedrich Nietzsche
Em um amplo estudo recente, pesquisadores da Universidade do Texas recrutaram 438 homens e mulheres para avaliar positiva ou negativamente as atitudes espontâneas de 171 crianças em contextos sociais corriqueiros. Eles constataram que as que falaram a verdade foram, em geral, consideradas merecedoras de punição, enquanto as que mentiram para ser educadas ou corresponder às expectativas dos adultos receberam a aprovação da maioria. No contexto da primeira infância, pronunciar as chamadas mentiras pró-sociais — motivadas pelo desejo de poupar o outro — parece aceitável, distante das inverdades que fazem crescer o nariz de Pinóquio na história infantil. Mas nessa fase o córtex pré-frontal e o sistema inibitório ainda não estão totalmente formados, e os pequenos são incapazes de diferenciar tipos de inverdades.
E assim, de mentirinha em mentirinha, a criança recebe o ensinamento de que ser pouco sincera compensa. “Só a partir dos 6 anos ela consegue julgar por si mesma quando não vale a pena ser honesta para evitar magoar o outro”, explica a neurocientista Lívia Freitas. Em busca do equilíbrio na linha tênue entre ser sincero e ser educado, a professora Maria Eduarda Capossoli, 23 anos, adota um diálogo aberto dentro de casa com Helena, de 3. “Se ela não gosta de alguma coisa em alguém, tentamos mostrar que ela pode guardar para si o sentimento, sem elogios falsos”, relata Maria Eduarda.
A franqueza pode vir com embalagens agradáveis — por exemplo, explicando que quem dá presente está querendo agradar e expressar seu afeto e, portanto, deve sempre ganhar agradecimento com abraço e beijo (o que certamente suaviza a carinha de decepção). Por outro lado, se a sinceridade resulta em castigo ou repressão, ela passa a ser deixada de lado. Foi um longo caminho até o fisioterapeuta Mário Henrique Fernandes, 36 anos, entender que a punição ao detectar uma mentira não funcionava com o filho Hugo, 9 anos. “Acho que o repreendia de uma forma muito dura. Hoje tento não brigar, levar uma conversa mais carinhosa”, diz Fernandes. Mãe de três filhos, a carioca Silvia Almeida, 40 anos, conta que Marcos, 13, Luiza, 10, e Julia, 5, já a fizeram passar por poucas e boas no quesito sinceridade sem filtro, mas a experiência tripla fez com que ganhasse cada vez mais facilidade na educação da meninada. “Eu me importava muito com o julgamento alheio. Agora, a prioridade é a saúde mental da minha família e a nossa relação de confiança”, explica. “Em casa, não trabalhamos com meias verdades. Mas, na rua, acho que elas podem contribuir para relações mais harmoniosas.”
Manipular a honestidade em nome da vida em sociedade é questão debatida por pensadores desde que o mundo é mundo — com maior ou menor apego aos fatos. O alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) considerava que a mentira pode ser uma ferramenta de proteção para falas inconvenientes. Em caminho de reflexão mais árduo, o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) afirma que os seres humanos gostam de ser enganados para não ter de lidar com a dureza da realidade nua e crua. Fato é que a verdade é um valor incontestável. Melhor, portanto, preservá-la sempre — ainda que à custa de certo constrangimento dos pais de crianças sinceras demais.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816