Único romance de Fernando Pessoa ganha nova versão criteriosa
Chega ao país uma reedição de 'Livro do Desassossego' — uma janela reveladora da mente do poeta português
Quando tinha só 14 anos, Fernando Pessoa (1888-1935) criou os primeiros de seus famosos heterônimos — todos eles, colaboradores do jornal O Palrador, que o autor produzia sozinho. Aos 47, morto em decorrência de uma falência de órgãos agravada pelo consumo excessivo de álcool e ópio, Pessoa já tinha criado dezenas de vidas (fala-se em até 120 personas) para aplacar sua constante inadequação diante do mundo. O modernista Álvaro de Campos, o erudito Ricardo Reis, o bucólico Alberto Caeiro, o tradutor Vicente Guedes e o funcionário público Bernardo Soares estão entre os heterônimos mais presentes em sua obra. Dois deles — Guedes na primeira parte e Soares, na segunda — assinam o Livro do Desassossego, misto de romance e diário que faz o mergulho mais profundo nas angústias, dúvidas e genialidade do escritor.
Publicado postumamente em 1961, o título é o único romance de um dos maiores poetas da língua portuguesa. Agora, um novo atributo justifica sua reedição no país: esta pode ser a versão definitiva de uma obra que sempre desafiou os estudiosos. Os mais de 400 trechos manuscritos ao longo de vinte anos foram revistos e organizados por Jerónimo Pizarro, especialista em Pessoa. Com enredo diáfano, o Livro do Desassossego é carente de ações e diálogos, mas rico em lirismo e contundência. Num mundo saturado de tramas, continuações, temporadas e storytelling, voltar às sensações primais é um alívio bem-vindo.
Ainda que o livro seja inacabado, muitos dos fragmentos contêm precisas instruções do autor indicando onde determinado trecho se encaixaria na versão final e a qual dos heterônimos seria creditada a autoria. As notas de rodapé ajudam a conduzir os leitores pelo método de composição de Pessoa — cuja personalidade retraída abrigava uma mente tempestuosa, capaz de ir dos desvãos sombrios a pensamentos ensolarados.
Box Obra poética de Fernando Pessoa
Autor de frases que saltam das páginas como verdades reveladas, Pessoa sabe lidar com ritmos, aliterações e imagens. “Estou liberto e perdido. Sinto. Esfrio febre. Sou eu”, anuncia. Sagaz, lança argumentos difíceis de refutar: “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória”. E, como bom influencer que sempre foi, produziu aforismos atemporais, que hoje atraem likes em redes sociais: “Como a nossa sombra a vida persegue-me”; “Eu não sou pessimista, sou triste”.
Críticos defendem a ideia de que a obra não é propriamente um livro, mas um conjunto de litanias, devaneios, lamentações e memórias. Enfim, um diário do autor talvez mais introspectivo da língua portuguesa. Sem uma história linear, os trechos podem ser lidos aleatoriamente ou na ordem cronológica proposta. As centenas de fragmentos curtos, quase todos inéditos durante a vida do autor, dão uma medida da sensibilidade de Pessoa, um autor que investiga a si mesmo para revelar a humanidade em seus leitores: “Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas”.
Nascido em Lisboa, Pessoa perdeu o pai cedo e sua mãe casou-se novamente. Em 1896, sua família se mudou para a África do Sul, pois João Miguel Rosa, seu padrasto, assumiria o posto de cônsul português no país. O jovem foi alfabetizado em inglês e fez seus primeiros poemas no idioma bretão. Em vida, Pessoa publicou apenas quatro livros: três coletâneas de poemas em inglês e somente uma em português, o monumental Mensagem (1934). O alheamento e um contínuo sentimento de dissonância são perceptíveis em grande parte da obra pessoana. É compreensível, pois na infância e juventude foi um estrangeiro em uma colônia britânica. Não era colonizador, nem colonizado. Depois, ao retornar a Lisboa, Pessoa se refugiou em si mesmo e no idioma português, uma língua tão marginal quanto ele, pois não era poderosa como o inglês, nem influente como o francês. No Livro do Desassossego essa dificuldade de Pessoa e de seus heterônimos em se encaixarem na sociedade atinge níveis estratosféricos. “Este livro é a autobiografia de quem nunca existiu”, proclama. Santa modéstia de um poeta imortal.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823
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