Um mirante elevado
Dois lançamentos de Umberto Eco — um artigo clássico sobre o fascismo e uma coleção de conferências — mostram quão longe o autor italiano viajava no ensaio
Acadêmico italiano que começou a carreira estudando as ideias estéticas de Santo Tomás de Aquino e depois lecionou filosofia e semiótica na Universidade de Bolonha, Umberto Eco (1932-2016) foi o autor do mais improvável dos best-sellers, O Nome da Rosa, um romance policial ambientado em um mosteiro da Idade Média que vendeu milhões no mundo todo. Sua vocação primeira, porém, era para o ensaio e para a crítica. Publicou mais de trinta livros nesses gêneros, contra apenas sete romances (nos quais, aliás, quase sempre havia excursos ensaísticos). Nos Ombros dos Gigantes, coletânea de textos póstuma que chegou há pouco às livrarias brasileiras, não estará entre seus livros fundamentais: aqui, Eco revisa e revisita temas que lhe são caros, mas sem avançar novas proposições teóricas ou achados críticos. São doze conferências produzidas especialmente para La Milanesiana, um festival cultural de Milão — daí o caráter mais ligeiro do texto. Graças a essa informalidade, porém, a obra oferece um passeio saboroso pelos temas que sempre provocaram a inteligência inquieta do escritor italiano — entre eles, a natureza dos personagens de ficção, a fluidez de nossos critérios de beleza e o fascínio que conspirações imaginárias exercem sobre tantos crédulos. Ao lado desse portentoso livrão ricamente ilustrado, a Record também lançou O Fascismo Eterno. Trata-se de um ensaio que já constava de Cinco Escritos Morais, de 1997, e que ganha edição independente no rastro da recente ascensão de populistas de direita pelo mundo.
Comecemos então pelo livro breve: O Fascismo Eterno foi originalmente publicado na The New York Review of Books, em 1995, e consagrou-se como uma reflexão fundamental sobre o tema. Eco argumenta que, comparado ao nazismo, seu irmão alemão, o fascismo italiano era mais frouxo — uma ideologia marcada pela “debilidade filosófica”. E talvez por isso mesmo “fascismo” tenha se tornado um termo de uso amplo e elástico: “Pode-se tirar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sendo reconhecido como fascista”. Embora não acredite em uma repetição dos movimentos autoritários que emergiram na Europa nos anos 20 e 30, Eco adverte que certos elementos do fascismo podem se verificar em novas configurações históricas — entre eles, o culto à tradição, a recusa da modernidade, a valorização irracionalista da ação acima do pensamento e o apelo às classes médias frustradas. São características que o leitor já terá visto no cenário contemporâneo (falamos da Hungria, claro — de onde mais?).
Há um cativante toque memorialístico nesse artigo político. Eco começa evocando um concurso de redações para crianças que ele venceu em 1942, quando contava 10 anos. O tema da redação: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da nossa Itália?”. “Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto”, diz o autor. O pequeno Umberto, no entanto, acompanhava, em casa, no escuro, a programação da Rádio Londres, que mandava mensagens para movimentos de resistência ao fascismo. Não há digressões sobre a infância em Nos Ombros dos Gigantes, mas os doze ensaios, produzidos entre 2001 e 2015, têm um certo tom pessoal: são bate-papos com a plateia do festival Milanesiana. Às vezes, a conversa deriva para a superficialidade. O texto sobre “Paradoxos e aforismos”, em particular, decepciona: em uma revisão reticente da arte do aforismo, Eco dedica tempo demais a uma crítica a Oscar Wilde, passa correndo por Karl Kraus, um dos maiores aforistas do século XX, e ignora mestres do gênero como La Rochefoucauld e Friedrich Nietzsche. E há, no geral, uma ligeireza no modo como o autor empilha citações e referências, pulando séculos em poucos parágrafos — por exemplo, em um ensaio sobre mentira e falsificação, uma virada de página conduz o leitor de As Viagens de Gulliver (1726), ficção do irlandês Jonathan Swift, a O Ser e o Nada (1943), tratado filosófico do francês Jean-Paul Sartre.
Há, no entanto, aproximações entre obras de gêneros e tempos díspares que revelam a ousadia crítica de Umberto Eco. Em “A feiura”, ele lembra que São Boaventura dizia que uma obra de arte é bela se representa bem a fealdade do diabo — mas acrescenta uma ressalva maliciosa à palavra do santo: nas várias visões de demônio e dos tormentos do inferno que figuravam na arte de inspiração religiosa, “existia, mesmo que subterraneamente, um verdadeiro prazer do horrendo”. O mesmo deleite com o terror repete-se em várias pinturas que representam a morte triunfando sobre os vivos — como o quadro da escola catalã que se vê nesta página, à direita. Uma representação cinematográfica desse mesmo deleite perverso seria, segundo Eco, A Paixão de Cristo, filme de Mel Gibson que buscou apresentar a crucificação com um realismo inédito e sangrento. Em “A beleza”, Eco apresenta outra corrente subterrânea que buscaria amparo no sentimento do terror: o sublime, um “irmão gêmeo do belo”. Concepções mais clássicas da beleza buscam a proporção e a luz, mas o sublime valoriza “o doloroso e o tremendo” que vemos em céus tormentosos — ou nas rochas sobre as quais se quebram as ondas contempladas pelo viajante solitário retratado pelo alemão Caspar David Friedrich.
As teorias da conspiração sempre foram um tema forte da ficção de Eco — de O Pêndulo de Foucault (1988) a seu último romance, Número Zero (2015). Em “Algumas revelações sobre o segredo” e, sobretudo, em “O complô”, ele retorna ao assunto, arrolando, com certo desalento temperado pela ironia, narrativas delirantes sobre eventos correntes que pululam na internet — da participação do governo de George Bush nos atentados de 11 de setembro às ligações do papa Francisco com a maçonaria. O próprio Eco se arrisca a montar uma teoria da conspiração a partir de coincidências na trajetória de dois presidentes americanos, Abraham Lincoln (eleito em 1860) e John Kennedy (eleito em 1960). E levanta as raízes de uma contrafação que ganhou notoriedade pop com O Código da Vinci, do americano Dan Brown: o Priorado de Sião, uma ordem secreta que guardaria segredos sobre a descendência de Jesus, foi criação de dois picaretas franceses, Pierre Plantard, um militante de grupos antissemitas que depois da II Guerra inventou um currículo de militância na Resistência Francesa, e Gérard de Sède, autor de livros sobre os supostos mistérios de castelos da Normandia. Ao contrário dessas duas figuras suspeitas, Dan Brown é um autor de ficção — no entanto, como bem nota Eco, ele leva terrivelmente a sério as premissas doidivanas a partir das quais compõe seus best-sellers.
No ensaio que dá título ao livro, Eco fala de uma antiga imagem — teria sido empregada pela primeira vez pelo filósofo francês Bernard de Chartres, no século XII — que busca representar a situação do pensador, artista ou cientista da atualidade que se ampara nas realizações de mestres do passado: um anão sobre os ombros de gigantes. Na carreira acadêmica e literária, Eco botou seus pés sobre vários gigantes — de Santo Tomás de Aquino a Jorge Luis Borges. Ele mesmo não tem estatura comparável à desses antepassados. Mas o leitor encontrará em Nos Ombros dos Gigantes um bom mirante para contemplar as paisagens mais deslumbrantes da arte, da literatura e do pensamento.
Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617
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