Te cuida, Marília Mendonça: a sofrência alternativa da cantora Letrux
Com o disco 'Aos Prantos', a cantora carioca prova que a “dor de cotovelo” não é combustível só do sertanejo: o pop alternativo-cabeça tem sua musa chorona
Em 1988, Nas Montanhas dos Gorilas levou aos cinemas a trajetória da zoóloga Dian Fossey. O fim trágico da personagem interpretada por Sigourney Weaver — a ativista americana foi assassinada ao lutar pelos animais — fez a pequena Letícia Novaes, então aos 6 anos, chorar pela primeira vez vendo um filme. Décadas depois, Letícia virou Letrux. Hoje, aos 38, a carioca adotou as lágrimas como combustível musical. Não à toa, seu recém-lançado segundo disco-solo foi batizado de Aos Prantos: as faixas, que transitam pela filosofia, espiritualidade e paixão, embalam as lamúrias dos 220 000 ouvintes mensais que ela soma no Spotify. “Sou chorona desde a infância. Sempre fui sensível”, diz a cantora de olhar marcante e volumosos fios loiros.
Com um pé na dor de cotovelo de Marilia Mendonça e o outro no estranho jeitão performático de uma Marina Abramovic, Letrux atrai um público-cabeça. Quase uma versão nacional de Florence Welch, do grupo Florence and The Machine. De figurino extravagante e coreografias modernosas, Letrux cai no gosto do ouvinte que foge do sertanejo, mas no fundo compartilha dos mesmos sentimentos provocados por uma sofrência, daquela entoada em alto e bom som, com um copo de cerveja na mão e suor na testa. É a sofrência alternativa.
Mesmo tendo como pano de fundo bases de música eletrônica, a emoção que alimenta os canais lacrimais da cantora é a mesma que domina a arte desde os trovadores medievais: as agruras do amor. O peito aberto à vulnerabilidade traz consigo letras melancólicas, outras de superação, muitas com forte toque de sexualidade. “Todo corpo tem água, lágrima, suor e gozo / Ou a gente chora, ou a gente sua, ou a gente goza”, dizem os versos de Déjà-Vu Frenesi. Amante das artes plásticas e da literatura, Letrux usou diários de adolescência como primeira fonte de inspiração. Ela também incorpora em suas canções experiências de amigos e até relatos de amores que ouviu na rua.
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Fruto da união entre uma professora de francês e um bancário com alma de músico, Letrux cresceu em um ambiente propício à sensibilidade aflorada. “A gente amanhecia com B.B. King, meu pai colocava Raça Negra e depois os sambas-enredo do ano, seguidos de Beethoven e Chico e Bethânia.” Veio daí uma artista difícil de delimitar musicalmente. Quando adolescente, montou uma banda de rock. Em 2008, uniu-se ao então namorado, Lucas Vasconcellos, no duo Letuce, que mesclava indie rock com MPB. Em carreira-solo desde 2017, ela se esquiva quanto pode das barreiras de gênero. “Se tivesse de definir minha música, diria que é uma nova MPB”, teoriza.
Para além da veia romântica, a divagação intelectual e a espiritualidade são indissociáveis de sua personalidade — em tempos de Covid-19, ela “recarrega energias” em um sítio no interior do Rio. Sua verdadeira paixão, porém, é o mar, ao qual atribui propriedades curativas. Na música Salve Poseidon, exalta o deus das águas e usa da mitologia grega para construir uma analogia mística entre o amor e a natureza. O esoterismo, aliás, tem herança genética: o pai é um médium umbandista. Ela própria é espírita declarada, mas flerta com o budismo — alterna a meditação com banhos de ervas e descarregos. Já a mãe lhe apresentou a astrologia. “É algo que você precisa estudar, não acreditar”, diz.
Quem vê Letrux entregando shows quase delirantes nos palcos não imagina que a cantora é tida como a “alma velha” entre os amigos — no último ano, dispensou as festas para passar Natal, Ano-Novo e Carnaval em família. “Acham que eu sou doida ou drogada. Eu me apresento completamente sóbria, me conecto com minha própria energia, e depois vou para o hotel pedir uma canja e ficar na banheira.” A sofrência pode ser uma coisa muito pós-moderna.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684
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