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Relato do filho de Gabriel García Márquez revela dias finais do escritor

O autor foi descoberto pela geração Z, quem diria, na pandemia

Por Amanda Capuano Atualizado em 4 jun 2024, 11h55 - Publicado em 22 Maio 2022, 08h00

Em abril de 2014, o colombiano Gabriel García Márquez foi internado às pressas em um hospital na Cidade do México. Diagnosticado com pneumonia e suspeita de câncer no pulmão, Gabo, como era conhecido, foi então levado para a casa onde viveu por mais de trinta anos na capital mexicana para passar o resto de sua vida. Em frente ao local, admiradores aguardavam sua chegada. Os instantes finais da agonia do criador de monumentos literários como Cem Anos de Solidão, aos 87 anos, até sua morte, ocorrida poucas semanas depois, só se tornariam públicos em 2021, com o tocante livro de memórias Gabo & Mercedes: uma Despedida, escrito pelo cineasta e filho mais velho do mestre, Rodrigo García, e agora traduzido no Brasil pela editora Record. Reunindo os últimos dias do pai, a convivência com Gabo e a mãe, Mercedes, além de anedotas de infância, García, 62, oferece ao leitor uma janela para a vida íntima do Nobel de Literatura e criador do realismo mágico. “O aspecto público da morte do meu pai me lembra que ele não pertencia só a mim, mas a pessoas em todo o mundo. E quando os pais morrem, eles se tornam maiores, mas também mais humanos”, disse o autor a VEJA (leia abaixo).

Gabo & Mercedes: Uma despedida

Habituado a colocar pílulas pessoais em seus livros, Gabo não escondia do leitor suas origens. No clássico Cem Anos, o Coronel Aureliano Buendía foi inspirado em seu avô, com quem morou até os 8 anos na cidadezinha de Aracataca, na Colômbia. A região inspira o vilarejo fictício de Macondo, cenário de suas histórias. Obras como essa desde sempre exerceram fascínio nos leitores, claro. Mas a pandemia teve o efeito de renovar o interesse por seus romances — e apresentá-los, aleluia, à geração Z. Com 2,8 milhões de cópias já comercializadas no Brasil, suas obras tiveram um aumento de vendas de 81% nos últimos dois anos. No auge do isolamento social, muita gente aproveitou para colocar em dia a leitura de clássicos, especialmente aqueles que tinham alguma relação com a realidade do coronavírus. “Identificamos um aumento na procura por romances que tratavam de epidemias, e é o caso de García Márquez com seu O Amor nos Tempos do Cólera”, explica Sônia Machado Jardim, presidente do Grupo Record. Surfando na onda Gabo, a editora lança nesta semana o monólogo Diatribe de Amor contra um Homem Sentado, única peça escrita por ele durante a carreira, até então inédita no Brasil. E até o streaming corre atrás: uma adaptação de Cem Anos de Solidão está em curso na Netflix.

Cem anos de solidão

Nascido das anotações de Rodrigo enquanto encarava a morte iminente do pai, Gabo & Mercedes mescla o sofrimento da perda a passagens cômicas do passado, apresentando facetas até então desconhecidas do autor e sua obra. Quando crianças, Rodrigo e o irmão Gonzalo acordavam Gabo todas as tardes após a sesta. Os dois bolaram uma técnica para despertá-lo sem sustos: paravam na porta do quarto e o chamavam em tom baixo, para que ele não despertasse abruptamente de algum sonho. Se acordava de supetão, os meninos corriam em direção ao corredor para fugir da confusão. “Só eu ou meu irmão poderíamos fazer esse livro”, diz García.

Box Gabriel García Márquez

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A passagem mais impactante dá conta dos últimos anos de Gabo. O filho expõe de maneira sensível a fragilidade de sua velhice. Diagnosticado com demência, o gênio se tornou incapaz de escrever e enfrentou a perda de memória progressiva. Anos antes de morrer, lia os próprios livros sem saber que eram dele. Quando tinha consciência das lembranças se esvaindo, pedia ajuda aos filhos. “A memória é minha matéria-prima”, dizia. Seus livros nunca nos deixarão esquecer do valor mágico delas.

“Os jovens descobriram meu pai”

CARINHO - García: memórias tocantes de um adeus -
CARINHO – García: memórias tocantes de um adeus – (Victoria Will/EL MUNDO/.)

Rodrigo García, filho do autor de Cem Anos de Solidão, falou a VEJA sobre seu livro de memórias ao lado do pai e da mãe.

Seu pai morreu há oito anos. Por que lançar um livro sobre seus últimos momentos só agora? Minha ideia nunca foi escrever um livro. Estávamos esperando a morte dele e comecei a registrar algumas coisas. Eu não queria publicar algo sobre a morte de um pai famoso, então deixei as anotações de lado. Quando minha mãe morreu, em 2020, percebi que queria falar sobre o adeus dos pais. Quando você perde ambos, é um capítulo que se fecha.

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As pessoas conhecem Gabriel García Márquez por meio dos livros dele. Acha que sua obra pode apresentar ao mundo outro Gabo? Sim, tentei colocar ali anedotas que não eram tão conhecidas. Algumas coisas são bem pessoais, como a forma como eu e meu irmão o acordávamos todas as tardes. É como abrir uma janela para o que foi nossa família.

Uma parte pungente do livro é aquela em que são narrados os problemas de memória que ele enfrentou no fim da vida. Como foi a relação de Gabo com a literatura nesse período? Nos últimos três anos, ele não conseguia escrever. O pior ano foi aquele em que meu pai sabia que estava perdendo a memória. Depois disso, ele seguiu trabalhando em um livro, mas nunca conseguiu termi­ná-lo. No final, ele lia as próprias obras e às vezes percebia só no desfecho que eram dele. Mesmo antes de perder toda a memória, ele não sabia mais de onde aquelas histórias haviam surgido.

Como avalia o legado de García Márquez? Parece algo sólido. Os jovens continuam lendo os livros dele. São obras estudadas em escolas e universidades. Quando ele morreu, houve uma nova onda de interesse, e agora os livros são populares até onde não costumavam ser, como na China. Muitas pessoas estão descobrindo meu pai.

Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790

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