“Racismo não é só ser chamado de macaco”, diz o tenor Jean William
O artista teve de superar a discriminação para se impor no mundo da ópera
Sou um homem negro brasileiro, e quem disser que não existe racismo no país não conhece o Brasil. Por isso, quando vi um policial apontando uma arma para mim, no fim de janeiro, foi assustador. Eu estava no banco do motorista do meu carro, um Jeep Renegade, com um amigo, para fazer a travessia da balsa entre Santos e Guarujá, quando eles nos mandaram descer com as mãos para cima. Perguntaram se o automóvel era meu, se eu estava carregando drogas e se já havia sido preso. Revistaram meus bolsos e o veículo. Quando finalmente se convenceram de que eu não era bandido, disseram que me abordaram porque eu poderia ter feito alguma “manobra brusca”, e depois foram embora sem revelar o verdadeiro motivo daquilo tudo. Não entendi nada. Ficamos com muito medo e envergonhados, com todo mundo nos observando. Decidi denunciar a ação e só fui descobrir a suposta razão da abordagem três dias depois, pela imprensa. O motivo teria sido a averiguação da placa do meu carro, que estaria clonada. Com essa justificativa, ainda que tardia — e que eu prefiro acreditar que seja verdadeira —, não posso afirmar que a ação da polícia foi motivada por discriminação, nem passaria pela minha cabeça fazer uma acusação sem provas. Mas é fato que o racismo no Brasil é estrutural. Li comentários de pessoas dizendo que eu tive sorte porque o policial não atirou, nem me agrediu fisicamente. Quer dizer: as pessoas ficam esperando que a gente sofra ainda mais para ser considerado racismo? Não estou acostumado a ter uma arma apontada para mim. Eu era um alvo ali. Senti muita angústia.
Infelizmente, desde criança, eu sofri diversos episódios de racismo. Nasci em Barrinha, uma cidade de 30 000 habitantes no interior de São Paulo. Fui criado pelos meus avós, que também eram negros e pobres. Meu avô trabalhava na lavoura de cana e minha avó era faxineira de hospital. Sempre gostei de cantar e era conhecido por lá como “o menino que canta”. Na adolescência, formei uma banda de rock e, num concurso, ganhei uma bolsa de estudos de canto lírico. No curso, brinquei com a professora que eu sabia imitar o Pavarotti e ela notou que eu, realmente, tinha voz de tenor. Decidiu, então, trabalhar minha técnica vocal. Anos depois, fui estudar canto lírico na Universidade de São Paulo. Na época, outra professora me disse que eu tinha uma voz bonita, mas não deveria seguir carreira lírica porque não havia “príncipes negros na ópera”. Já me disseram também que não combinaria um “pretinho cantando em italiano”. Racismo não é só ser chamado de macaco.
Minha grande oportunidade veio em 2009, quando uma amiga me apresentou ao maestro João Carlos Martins. Ele me convidou para ir à sua casa fazer uma audição para uma vaga na Bachiana Filarmônica do Sesi-SP. Chegando lá, me surpreendi com a presença do padre Marcelo Rossi. Antes do teste, nós três almoçamos juntos. Logo depois da audição, o maestro me convidou para cantar já no dia seguinte, como solista na filarmônica. Ele é uma grande inspiração para mim e me colocou no mercado de trabalho. Desde então, eu já cantei para o papa Francisco na Praia de Copacabana, com uma plateia de 3 milhões de pessoas. Também cantei para o príncipe de Mônaco, fiz dueto com a Laura Pausini e, claro, com o próprio maestro. Já viajei o mundo a trabalho, inclusive para uma apresentação no Lincoln Center, em Nova York. Passei a acessar ambientes que seriam impossíveis se não fosse pela minha formação e meu talento. Recentemente, fui homenageado na minha cidade, com um teatro com o meu nome. Pretendo continuar cantando e trabalhando para democratizar a arte, porque eu venho de um lugar onde a música clássica não era comum, e seu impacto positivo transformou minha vida.
Jean William em depoimento dado a Felipe Branco Cruz
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777