Quem é Jane Campion, premiada melhor diretora pelo Oscar
Depois de quase 30 anos de sua primeira indicação na categoria, neozelandesa é vencedora por trabalho em ‘Ataque dos Cães’
Aos 67 anos, a neozelandesa Jane Campion acaba de se tornar a terceira mulher reconhecida pelo Oscar de melhor direção, pelo longa Ataque dos Cães. Em 84 anos de premiação, Campion é também a primeira mulher na história a receber duas indicações na categoria — a primeira em 1994, por O Piano. Na época, foi a primeira mulher a receber a Palma de Ouro de melhor filme, prêmio maior do Festival de Cinema de Cannes. O feito no Oscar representa bem a incursão da diretora por uma vertente de cinema mais alternativa e menos comercial: seus trabalhos são delineados por visuais fortes, personagens complexos e histórias que fogem do trivial. Apesar de transitar com honrarias pelos festivais europeus durante a maior parte de sua carreira, foi do outro lado do Atlântico que Campion fez história naquele que, querendo ou não, ainda é o maior prêmio do cinema mundial — e com uma trama tipicamente americana de caubóis do Oeste.
Depois de 12 anos sem trabalhar em nenhuma longa-metragem, Campion se voltou para a adaptação do romance The Power of the Dog (não publicado no Brasil), do americano Thomas Savage, publicado em 1967. A narrativa gira em torno de dois irmãos fazendeiros, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons) Burbank. Quando George se casa com a viúva Rose (Kirsten Dunst) e traz a esposa e seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee) para viver no rancho da família, o bruto e provocativo irmão Phil faz de sua missão pessoal o terrorismo psicológico com os novos integrantes. A direção poderosa de Campion consegue captar as sutilezas do ambiente hostil e árido do Oeste, no que se revela uma história sobre tensões familiares, vingança, masculinidade tóxica e desejo reprimido.
As cenas contemplativas de Campion exalam tom artístico — e não é por acaso. A vocação vem de berço: sua mãe foi atriz e escritora e seu pai trabalhou como ator e diretor de teatro. Juntos, fundaram a primeira companhia de teatro profissional da Nova Zelândia. Campion decidiu seguir por outro caminho e, antes de estudar cinema, se formou em antropologia e artes visuais. Foi a limitação das tintas e molduras que levou a neozelandesa a buscar por uma tela maior, mais viva e dinâmica, quando em 1980 lançou sua primeira produção audiovisual , o curta-metragem Tissues. Já em 1986, saiu vitoriosa na edição do Festival de Cannes, levando uma Palma de Ouro de curta-metragem por Peel (1982). Depois de outros trabalhos no formato e algumas produções para a televisão, a então novata debutou nos longa-metragens com Sweetie (1989) e Um Anjo em Minha Mesa (1990), até o sucesso maior com o premiado O Piano, em 1983. Apesar de não ter levado a estatueta de melhor direção no Oscar na época, foi vitoriosa na categoria de melhor roteiro original pela história.
Dentre os trabalhos que se seguiram, os destaques são para Retrato de Uma Mulher (1996), adaptação da obra homônima de Henry James, com Nicole Kidman no papel principal; e Em Carne Viva (2003), um suspense erótico baseado no livro de Susanna Moore, com Meg Ryan e Mark Ruffalo. Campion ainda se dedicou à televisão entre 2013 e 2017, quando roteirizou e co-dirigiu o seriado Top of the Lake, protagonizado por Elisabeth Moss. Mesmo em suas empreitadas mais comerciais, Campion nunca abandonou o que lhe brilha os olhos. São seus preferidos os tópicos geralmente varridos para baixo do tapete, como erotismo, relações de poder, papéis de gênero, intimidade e opressão; narrativas que investigam personalidades e comportamentos complexos, ambíguos ou perturbadores. Fica claro porque, então, ela viu potencial em Phil Burbank, em seu primeiro filme com protagonistas masculinos.
Para chegar ao nível de complexidade de seus temas, Campion não mede esforços para compor performances potentes. A diretora é conhecida por demandar uma preparação rigorosa de seus atores, ao passo que os acompanha na jornada — e quer entender verdadeiramente cada um dos personagens. Em Ataque dos Cães, por exemplo, Kirsten Dunst trabalhou em cenas que não estavam no roteiro para compreender melhor a vida interior de Rose. Mas foi Benedict Cumberbatch quem realmente mergulhou no velho faroeste: o britânico se mantinha no personagem durante todo o momento e, antes das filmagens começarem, passou um tempo num rancho em Montana com um caubói de verdade, onde aprendeu habilidades utilizadas em cena. A própria diretora também teve sua dose de preparação e se consultou com uma analista de sonhos para poder se conectar a fundo com Phil.
A capacidade de Campion em manter a delicadeza narrativa mesmo em ambientes cercados pelo grosseiro refletem um passado com fantasmas próprios. Ao The New York Times, a diretora revelou só ter percebido uma conexão pessoal com o material de Ataque dos Cães um tempo depois, quando lembrou de uma babá que por anos aterrorizou a ela e aos irmãos na infância — certa vez, a mulher chicoteou Jane, deixando marcas em suas costas. Apesar de tentativas de contar aos pais sobre os abusos, as crianças foram desacreditadas por anos. “Isso me fez pensar: É por isso que entendo o terror de Phil. Eu sempre sabia onde ela estava na casa”, disse à publicação. A vida doméstica para a jovem Jane, no geral, nunca foi fácil. O pai esteve envolvido em casos com outras mulheres e a mãe tinha depressão, chegando a tentar suicídio algumas vezes.
Apesar das memórias duras, Campion se mantém sempre simpática e com uma aura serena quando em frente às câmeras. E, por trás delas, foi, sorrateiramente, conquistando seu espaço em meio a elite masculina no cinema. “Acho que Hollywood está muito assustada”, disse a diretora ao The Guardian sobre os resultados do movimento #MeToo. “Não está na moda ser misógino. Não vai mais passar despercebido”. No que diz respeito às mudanças vagarosas que vêm acontecendo na indústria cinematográfica, Jane Campion foi uma das primeiras mulheres a deixar sua marca enquanto desbravava esse deserto masculino — sem nunca abandonar sua sensibilidade.