Por que os gatos são superiores aos humanos, segundo um eminente filósofo
Em novo livro, o pensador John Gray viaja pela história da filosofia para tratar do tema com ironia e perspicácia
Em uma passagem do monumental romance Ulisses, de 1922, o protagonista Leopold Bloom conversa com sua gata — cada um em sua língua, vale ressaltar. Ela mia em tons distintos para cada pergunta do humano, o qual logo entende seus desejos: um carinho específico na cabeça e um pires de leite. Bloom, então, reflete sobre a relação entre homens e felinos: “Eles os chamam de tolos. Mas eles (os gatos) nos entendem melhor do que nós os entendemos. Me pergunto o que será que eu pareço para ela. Uma torre alta? Não, ela pode pular por cima de mim”. O irlandês James Joyce (1882-1941), autor da obra que marcou a literatura moderna, integra um clube peculiar e atemporal de intelectuais: o daqueles que se renderam aos encantos e mistérios da espécie felina — e dali tiraram inspiração para suas obras.
Mais que seduzidos por um animal de estimação, esses elurófilos — ou gateiros, em bom português — viam nos bichanos características de personalidade admiráveis e até superiores às dos seres humanos. Sob essa óptica, o autor e filósofo inglês John Gray, 74 anos, escreveu o saboroso ensaio Filosofia Felina. Respeitadíssimo nos campos da análise política e econômica europeia, Gray tece aqui, com ironia e perspicácia, as razões pelas quais os humanos têm muito a aprender com seus companheiros peludos.
Ex-professor da Universidade de Oxford — e cético em relação aos humanos —, Gray passeia pela história da filosofia, de Aristóteles (384-322 a.C.) a Friedrich Nietzsche (1844-1900), expondo a visão de grandes pensadores sobre a hierarquia que eleva os homens perante os outros animais. Diante dessa alegada superioridade, Gray ri com desdém. Ele aponta a obsessão do homem pela felicidade e por um propósito como elemento que cria uma sociedade ansiosa, que projeta sua alegria no futuro e nunca no presente — temor que não tira o sono dos felinos. Eventualmente, essa busca culmina na necessidade de se enquadrar em grupos e ideologias, seguindo líderes religiosos e políticos — alfinetada que inclui da direita à esquerda. Nesse cenário, a filosofia seria um remédio do homem para curar a bagunça que ele mesmo criou. Se o mundo fosse dominado por gatos, Gray acredita que estaria desempregado.
Donos de uma compreensão inata de como viver, os bichanos não precisam da filosofia — não sentiriam falta dela nem mesmo se fossem racionais, aposta o inglês. Isso porque eles não lutam contra a própria natureza, se adaptam rapidamente e desfrutam uma invejável autonomia no mundo animal (evidente indireta nos cachorros, tão adoráveis mas carentes).
Ensaios: que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios
É longa a lista de ilustres pensadores que compartilham dessa paixão. O filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), chamado de pai do humanismo — e gateiro de carteirinha —, foi quem proferiu a famosa frase que questiona a tal superioridade do homem: “Quando brinco com minha gata, como sei se não é ela que está brincando comigo, e não eu com ela?”. Winston Churchill (1874-1965) também se derretia pelo animal: quando o ex-ministro inglês morreu, seu gato vira-lata de pelagem laranja Jock estava ao seu lado na cama.
Na literatura, os felinos reinam. O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) teve dezenas de gatos, mas um foi favorito: Beppo, que até ganhou um poema em sua homenagem — e um verso elaboradíssimo para definir um simples carinho: “O teu dorso condescende com a morosa carícia desta mão”. O Nobel de Literatura Ernest Hemingway (1899-1961) teve tantos gatos que, hoje, a casa onde viveu na Flórida é um museu em sua homenagem, mas também abrigo de 59 bichanos. Em Filosofia Felina, Gray olha com particular curiosidade para a conexão de Patricia Highsmith (1921-1995) com os bichos. Reservada e obrigada a esconder sua homossexualidade, a autora de O Talentoso Ripley encontrou nos gatos a companhia ideal — e escreveu tramas sobre animais maltratados que se vingam dos humanos. O nome Ripley, dado a seu charmoso psicopata, aliás, era de um de seus gatos.
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A psicopatia, porém, é um transtorno exclusivo das pessoas. Gray aproveita a deixa para refutar a má fama dos felinos, de dissimulados e cruéis, crenças espalhadas por religiões monoteístas em resposta aos pagãos que os adoravam. Numa piada com a autoajuda, o autor lista dez dicas dos gatos para os humanos. A brincadeira vai desde dormir pelo prazer de dormir (e não de descansar) até a difícil missão de encontrar prazer na vida frugal e cotidiana. Haja miados de sabedoria.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810
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