Os melhores de 2024 no cinema, na televisão, na música e na literatura
Em tempos de incertezas e foco na saúde mental, a vida como ela é virou um mote de peso nos melhores do entretenimento do ano

O selo “baseado em uma história real” é poderoso: filmes, séries, livros e até discos que espelham fatos verídicos sempre tiveram apelo irresistível. Mas o ano de 2024 foi particularmente pródigo nisso. A realidade está no drama do clã do ex-deputado Rubens Paiva, morto pela ditadura, no longa Ainda Estou Aqui, embasa as séries Xógum e Bebê Rena e alguns dos livros do ano. De forma menos direta, inspira também a animação Divertida Mente 2, que fala de um mal concreto: a epidemia de ansiedade. Em tempos de incertezas e foco na saúde mental, a vida como ela é virou um mote de peso nos melhores do entretenimento de 2024, como se confere a seguir.
1- AINDA ESTOU AQUI (Brasil, 2024)
Entre as habilidades essenciais para fazer cinema está a capacidade de transformar dilemas humanos e crises políticas e sociais em entretenimento — alcançando, assim, um maior número de pessoas. O ano de 2024 testemunhou exemplos notáveis de produções que encararam com brilho esse desafio. Entre elas, uma pérola nacional: adaptação do livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui volta ao passado do país para narrar um drama familiar ligado ao Brasil dos dias de hoje. A trama se inicia com o casal Rubens e Eunice Paiva no acalorado verão do Rio de Janeiro. A rotina idílica da família é interrompida bruscamente quando agentes da ditadura militar invadem a casa e levam Rubens, um engenheiro e ex-deputado, para prestar depoimento. O drama real é amplamente conhecido: morto sob tortura, Rubens nunca mais foi visto. Delicado e contundente, o filme então se volta para Eunice, interpretada de forma acachapante por Fernanda Torres — e pela mãe da atriz, Fernanda Montenegro, na velhice. Com cinco filhos, a dona de casa teve de se reinventar. Ela voltou a estudar, se tornou advogada e buscou incansavelmente informações sobre o marido, vivido no filme por Selton Mello. Candidato brasileiro ao Oscar de 2025, o longa amplia com elegância o currículo do diretor Walter Salles. Nome por trás do aterrador Terra Estrangeira (1995), do emotivo Central do Brasil (1998) e do poético Abril Despedaçado (2001), Salles tem uma visão perspicaz sobre o país: entre a desilusão e a esperança, seus filmes refletem a ação humana possível diante de enormes desafios existenciais — sempre mirando o futuro, mas sem deixar de lado o passado.

2- DIVERTIDA MENTE 2 (Estados Unidos, 2024)
O transtorno de ansiedade é o mal do século e atinge cerca de 300 milhões de pessoas no mundo — o que ajuda a explicar o sucesso arrebatador da animação que marcou o ano, batendo recordes de bilheteria. Sequência do filme da Pixar de 2015, Divertida Mente 2 entra em um terreno assustador: a mente nada equilibrada de uma pré-adolescente que, ao mesmo tempo que tenta moldar sua personalidade e entender quem é, ainda deve lidar com as novas emoções que chegam sem aviso prévio. A começar pela intransigente Ansiedade — a personagem alaranjada toma para si a central de controle que governa as ações da garota, escanteando a eufórica Alegria, até então a líder por ali. Junto com a novata inquieta, os sentimentos Tédio, Inveja e Vergonha também ajudam a causar uma confusão generalizada na cabecinha da jovem, que precisa aprender a lidar com os novos moradores na marra. Visto por mais de 20 milhões de pessoas no Brasil, o longa de Kelsey Mann arrecadou 1,69 bilhão de dólares no mundo, conquistando o posto de animação mais rentável de todos os tempos. Com uma sensibilidade ímpar e uma estética de encher os olhos, o filme agradou a adultos e crianças — e trouxe o tema espinhoso para as rodas de conversa de famílias e amigos. Uma vitória e tanto contra a danada de cor laranja.
3- A SUBSTÂNCIA (Estados Unidos/França/Reino Unido, 2024)
Ex-estrela decadente de Hollywood, Elisabeth (Demi Moore) agora apresenta um vergonhoso programa de ginástica na TV. O cenário ruim fica pior: aos 50 anos de idade, ela é considerada velha demais para a função e acaba demitida pelo canal. O desejo de beleza e juventude a leva a um procedimento estético misterioso e para lá de exagerado: a mulher deve aplicar na veia uma substância amarelada que fará sair de dentro dela (literalmente) uma garota linda e esbanjando colágeno, papel de Margaret Qualley. Mas há uma pegadinha. As duas versões devem se revezar: uma vive sete dias, enquanto a outra fica em uma espécie de coma, ligada a uma alimentação intravenosa, até trocarem de lugar por mais sete dias — dinâmica que não funciona assim tão bem. Obra da diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat, o filme cavou trincheira no terreno da cultura pop, ensejando desde análises profundas até os famigerados memes. O roteiro sagaz foi premiado no Festival de Cannes por iluminar, usando ferramentas do body horror — o terror corporal —, as absurdas pressões pela beleza vividas por mulheres de todas as idades. De quebra, trouxe Demi Moore, relegada por Hollywood justamente por envelhecer, ao lugar da protagonista.
4- DUNA: PARTE 2 (Estados Unidos, 2024)
Denis Villeneuve estabeleceu no primeiro filme, de 2021, as bases do universo criado por Frank Herbert no livro Duna (1965). A continuação foi além do estupor contemplativo do longa anterior, com roteiro que equilibra tensão e emoção e se embrenha no tema principal da história: a perigosa mistura da política com a religião. Timothée Chalamet (Paul Atreides) e Zendaya (Chani) reforçam o espetáculo que devolveu ao cinema de fantasia o frescor que andava sumido desde O Senhor dos Anéis (2001).
5- GUERRA CIVIL (Estados Unidos/Reino Unido/Finlândia, 2024)
Com o brasileiro Wagner Moura no elenco, o filme do cineasta Alex Garland imagina um confronto armado em solo americano, motivado por um elemento bem palpável hoje: a polarização política. A trama observa a guerra civil e a banalidade da violência pelos olhos de um grupo de jornalistas, formado pelo personagem de Moura e pela fotógrafa de guerra vivida por Kirsten Dunst. Acostumada aos horrores de regiões em conflito, ela reflete sobre os limites que transformam humanos em inimigos.
TELEVISÃO

1- XÓGUM: A GLORIOSA SAGA DO JAPÃO (Disney+)
Produzido pelo estúdio FX e baseado no livro clássico de James Clavell, o épico Xógum surpreendeu muita gente ao arrebatar nada menos do que dezoito estatuetas do Emmy, maior premiação da TV americana. Mas seu êxito não deveria causar espanto. Ao contrário: ele resume uma nova ordem que já se anunciava e se impôs de vez nas produções televisivas no ano de 2024. A suntuosa série é falada em japonês, com elenco majoritariamente local e gravada no Canadá — um espírito multicultural que resume a era da globalização no streaming. No século XVII, o lorde Toranaga (Hiroyuki Sanada), senhor feudal que integra um conselho de regentes do Japão, se vê encurralado pelos colegas que temem a escalada de seu poder e tramam por sua deposição do cargo e morte. Para escapar do plano de seus rivais, Toranaga aproveita a chegada de um navegante inglês protestante, John Blackthorn (Cosmo Jarvis), para iniciar um complexo jogo de xadrez político entre os senhores do conselho e os padres que vinham expandindo a força da Igreja Católica no país e intermediando negócios com Portugal. A história mistura intrigas políticas, cenas de luta bem coreografadas, atuações excelentes e uma cenografia impecável que retrata o Japão e seus costumes mais antigos. Com fidelidade ao episódio real do período Xogunato Tokugawa (1603-1868) e roteiro arrojado, a série é um luxo só — e veio para fazer história.
2- RIPLEY (Netflix)
Dois anos antes do centenário da ácida escritora americana Patricia Highsmith, em 2019, o canal Showtime anunciou uma nova adaptação em série da saga de O Talentoso Ripley, publicado em 1955 e já filmado seis vezes para o cinema. Por idas e vindas de Hollywood, o resultado só chegou cinco anos depois — e foi parar na Netflix, onde rebateu o ceticismo de quem considerava a história de Highsmith esgotada na tela. Com atuação primorosa de Andrew Scott no papel do imperscrutável golpista Tom Ripley, os oito episódios fogem do idílio litorâneo e retratam uma Itália cheia de pedregulhos e escadas escuras em preto e branco, recurso ideal para estabelecer a atmosfera noir em torno dos crimes do personagem, que mente e mata para adentrar sem escrúpulos a alta sociedade europeia. Sagaz, o roteiro de Steve Zaillian, da cultuada The Night Of, ainda tece correspondências saborosas entre o protagonista e o pintor Caravaggio, ao falar de crimes passionais, de homens marginalizados e da arte do crime com sofisticação — honrando, assim, o antológico romance original.

3- HACKS — TERCEIRA TEMPORADA (MAX)
Lançadas em 2021 e 2022, as duas primeiras temporadas de Hacks seduziram uma audiência cativa graças à sua adorável trama de gato e rato — ou melhor, de gata e rata. O que está em foco na série cômica de episódios ligeiros é a relação tumultuada, porém cheia de sensibilidade e ironia, entre a veterana humorista do stand-up Deborah Vance (Jean Smart) e a roteirista Ava (Hannah Einbinder), jovem da geração Z que acabou de ser cancelada na internet e demitida de seu programa — e então abraça a missão de modernizar o repertório da humorista decadente. Para além desse mote, Hacks se revela, em tudo, uma delícia — e se superou com louvor em sua inspirada terceira temporada, que foi lançada este ano. A dupla inicia a nova leva de episódios separada, desfrutando de seus respectivos êxitos profissionais. Inevitavelmente, claro, as duas se juntam mais uma vez por um objetivo nobre — Deborah finalmente terá seu próprio talk show na televisão. A parceria, como sempre, termina em trombadas hilárias, confirmando que se está diante da melhor sitcom atual.
4- BEBÊ RENA (Netflix)
No universo da televisão de 2024, Bebê Rena cruzou os céus como cometa vistoso — e incômodo. Ao narrar a história do aspirante a comediante e bartender Donny (Richard Gadd), que vê sua vida se tornar um inferno ao conhecer Martha (Jessica Gunning), cliente de seu pub em Londres que se revela stalker obsessiva, a série ilustrou os dilemas de retratar a vida real na tela — marca registrada da TV no ano que passou. A minissérie é inspirada na vida de Gadd, que vive a si mesmo, e o empurrou para o sucesso mundial com o roteiro sobre um homem que não consegue escapar da loucura de sua perseguidora. Estreando sem alarde, a produção virou hit no boca a boca. Não sem polêmica: a mulher real que inspirou a personagem move um cabeludo processo contra a Netflix.
5- PINGUIM (HBO)
Se nos cinemas as adaptações da DC Comics acumulam resultados frustrantes, o mesmo não pode ser dito das séries de TV. Pinguim é o exemplo lapidar disso. Ambientada em uma Gotham destruída pelo Charada no filme The Batman (2022), a série se afasta do universo dos heróis e entrega uma história de máfia daquelas com reviravoltas e, claro, muitas mortes. Acompanhamos a ascensão de Oswald Cobb, o Pinguim (Colin Farrell), para se tornar o maior mafioso da cidade. Irreconhecível na pele do vilão, o irlandês Farrell apresenta uma interpretação memorável. Cobb é um daqueles malfeitores carismáticos que amamos odiar. O amor pela mãe e seu carinho pelo jovem pupilo Victor (Rhenzy Feliz) adicionam-lhe camadas de humanidade que quase nos fazem esquecer que é um inimigo mortal do Batman.
MÚSICA

1- COWBOY CARTER, Beyoncé (Parkwood Entertainment/Columbia/Sony)
O ano de 2024 cravou de vez o nome de Beyoncé como artífice da inovação musical. Com uma carreira longeva no pop e no R&B, a texana abraçou as raízes sulistas e lançou seu primeiro álbum country. O disco gerou barulho antes mesmo do lançamento: primeiro single do trabalho, Texas Hold ’em foi inicialmente rejeitado por uma rádio do Meio-Oeste americano, ensejando discussões sobre racismo e apagamento de artistas negros do gênero. Ligada a regiões rurais dos Estados Unidos, a música country virou símbolo do conservadorismo e da branquitude americana. O trabalho de Beyoncé cutuca esse vespeiro e recupera as raízes históricas do gênero, incluindo as talentosas mãos negras que ajudaram a forjá-lo e que foram silenciadas pela segregação. Com pesquisa histórica extensa e produção grandiosa, o álbum fez de Beyoncé a artista mais indicada ao próximo Grammy.
2- MILTON + ESPERANZA, Milton Nascimento e Esperanza Spalding (Concord)
Mesmo longe dos palcos, Milton Nascimento, aos 82 anos, não se aposentou da música. Seu álbum em parceria com a contrabaixista americana Esperanza Spalding, 40, traz composições inéditas e releituras de clássicos com participações das mais especiais. Entre elas, Paul Simon cantando em português a inédita Um Vento Passou. Das regravações, Cais virou um emocionante dueto entre Milton e Esperanza. Já Saudade dos Aviões da Panair tem Esperanza com Lianne La Havas, Maria Gadú, Tim Bernardes e Lula Galvão. O disco ainda homenageia Wayne Shorter, amigo de longa data de Milton, morto em 2023, em When You Dream.
3- HIT ME HARD AND SOFT, Billie Eilish (Darkroom /Interscope)
Na contramão dos álbuns longos que dominaram 2024, o terceiro disco de Eilish convence sem rodeios, com apenas dez músicas, provando que tamanho não é documento. Com experimentações vocais que fogem de sua usual voz sussurrada e uma produção ousada, o disco comprova o amadurecimento da cantora, que se liberta em letras sobre as dores da fama, o desejo por mulheres e inseguranças da juventude. De bônus, a vulnerabilidade que a consagrou confere às canções um poder de identificação e universalidade que fala diretamente a seu jovem ouvinte, trunfo essencial para as estrelas atuais.
LIVROS

1- OS BASTIDORES, de Martin Amis (Companhia das Letras, 592 págs.)
Vitimado por um agressivo câncer de esôfago, Martin Amis saiu de cena no ano passado, aos 73, na condição de um dos gigantes — quiçá o maior — de sua brilhante geração de autores britânicos. Com sua prosa elegante acima de tudo, sensual sem cair na vulgaridade, contundente mas nunca descambando para a violência gratuita, ele recebeu o merecido epíteto de “Mick Jagger da literatura”. Já acometido pela doença, o criador de romances memoráveis como A Zona de Interesse, convertido no filme que venceu o último Oscar de produção internacional, usou de toda sua fleuma e mordacidade para compor o belíssimo Os Bastidores. Sua obra derradeira mescla ficção e autobiografia — e funciona como um testamento literário não apenas do autor, mas de sua época. Com a sutileza e a sagacidade que lhe são inerentes, Amis vai de seus amores e experiências com a fama às inspirações (o russo Vladimir Nabokov à frente) e amizades fundamentais — sobretudo, com o americano Saul Bellow e o conterrâneo Christopher Hitchens. Eis um grande livro para saborear aos poucos, como quem sorve um uísque de primeira — e do qual se sai com poderosas lições sobre a vida e a morte.
2- MESTRE DOS BATUQUES, de José Eduardo Agualusa (Tusquets; 224 págs.)
Entre 1902 e 1904, Angola se viu tomada pelo maior conflito armado em solo africano até então, opondo o outrora poderoso reino de Portugal ao reino africano de Bailundo, na região central do país. A revolta verídica serve de pano de fundo para o romance fictício criado pelo autor angolano Agualusa, no qual um militar branco se envolve com uma jovem negra da elite da capital do país, Luanda. Por meio da história de amor, o escritor aborda temas como identidade e pertencimento, subvertendo estereótipos e ideias preconcebidas sobre sua nação. Ao olhar para o passado, reimagina um final diferente do que ocorreu: a realidade paralela de um mundo que se vê livre da brutalidade colonizadora.
3- MUDAR: MÉTODO, de Édouard Louis (Todavia; 240 págs.)
Nenhum autor teve passagem tão chamativa pelo Brasil em 2024 quanto o francês Édouard Louis, 32. Convidado de uma feira literária, ele ficou no país por duas semanas, como estrela de eventos em São Paulo e no Rio, mobilizando centenas de admiradores. Para entender o fuzuê, o melhor é ler essa que é a mais completa de suas ficções autobiográficas, na qual narra as transformações físicas e sociais exigidas para fugir de sua origem numa vila pobre marcada por discursos de ódio. Louis faz uma análise mordaz e sensível das violências de classe sofridas por ele e sua família, expondo os obstáculos para chegar a uma vida digna na França proletária.
Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2024, edição nº 2924