Onde tudo começou: mostra ilumina cidade crucial na história da pintura
Exposição em Londres resgata a arte de Siena, onde pela primeira vez se injetaram movimento e drama na pintura, abrindo caminho para o Renascimento

Em meados do século XIV, Siena e Florença eram arquirrivais tanto na guerra quanto na arte. Nessa disputa, a arma secreta de Siena era sua localização privilegiada na Via Francigena, rota que ligava a Itália ao noroeste da Europa e dali à Inglaterra, de barco, e fazia passar pela cidade as mais diversas inspirações artísticas, de tapetes islâmicos a esculturas francesas, que moldaram um estilo decorativo colorido e místico. É nessa fusão estética que surgem pintores como Duccio di Buoninsegna, Simone Martini e os irmãos Pietro e Ambrogio Lorenzetti, que têm suas obras reunidas na mostra Siena: o Nascimento da Pintura, 1300-1350, que acaba de chegar à National Gallery de Londres após temporada bem-sucedida no Metropolitan de Nova York. Embora sejam pouco conhecidos perto dos gênios que brilhariam no Renascimento cerca de 150 anos depois, de Leonardo da Vinci a Michelangelo, a obra magistral destes últimos talvez só possa ter existido graças ao pioneirismo dos mestres de Siena. “De certa forma, os artistas de lá definiram a arte para os séculos seguintes”, diz a curadora Caroline Campbell.

Com mais de 100 obras do período, incluindo pinturas, esculturas, painéis e diversos objetos decorados, a mostra busca resgatar o papel de destaque que a cidade italiana desempenhou na arte europeia. Naquele crepúsculo da Idade Média, os artistas de Siena operaram um milagre: adicionaram movimento e dramaticidade inéditos à pintura de cenas religiosas, quebrando a monotonia e inserindo novas nuances de cores ao padrão dourado então reinante nas representações do gênero. No auge, a pintura de Siena viajou por toda a Itália: Duccio foi contratado para assinar uma obra na igreja de Santa Maria Novella, em Florença, Pietro atuou em Assis, Cortona e Arezzo, e Simone foi convocado para a corte papal em Avignon.
A vibrante e cosmopolita Siena, no entanto, teve sua trajetória de brilhantismo interrompida pela peste negra, que, em meados de 1350, havia dizimado mais da metade de sua população — matando inclusive todos os seus principais artistas. Passado o trauma, a cidade tentou se recuperar, mas nunca mais voltou a ser o que era em seu auge medieval: em vez disso, foi ofuscada de vez por Florença, que se fortaleceu artística e politicamente e virou o polo mais célebre do Renascimento italiano.

Como era praxe na época, muito do que se produziu na pintura de Siena tinha o objetivo de adornar igrejas. Nessa função, eram muito valorizadas as peças conhecidas como retábulos — conjuntos de pinturas em pedaços de madeira que se encaixavam, feitas para decorar altares. A Virgem e o Menino com os Santos Catarina e João Batista, assinada por Giovanni di Agostino, é um desses exemplos. Essas obras podiam ser miniaturas ou gigantes. Prova disso é o Retábulo de Maestà, de Duccio, que foi finalizado em 1311 e se tornou o maior já pintado na Europa daqueles tempos. Pesada, a estrutura com 5 metros de largura e adornada dos dois lados foi carregada da oficina do artista até a suntuosa Catedral de Siena pelas ruas, como em um desfile. Anos depois, foi serrada para separar frente e verso, e vários de seus pequenos painéis, alguns deles expostos agora na mostra de Londres, circulam hoje como obras individuais — no total, existem 33 peças espalhadas por coleções em cinco países.

Mesmo as pequenas pinturas, no entanto, carregam a ideia de completude e religiosidade da escola de Siena: o Retábulo de Orsin, de Simone Martini, por exemplo, é um conjunto de pequenas tábuas de madeira pintadas de ambos os lados que, juntas, narram a crucificação de Cristo por meio de várias cenas. A obra foi levada ainda na Idade Média para a França e exerceu fascínio e influência sobre a arte do país. Por uma triste ironia, as pinceladas de Siena foram alvo de desdém nos séculos seguintes. Como o Renascimento alçou a habilidade artística a níveis nunca antes vistos, as pinturas medievais foram reduzidas à condição de arte que precede a “verdadeira” arte, carente da genialidade atingida mais tarde. Mas nada existe sem um começo — nesse caso, um pontapé inicial primoroso.
Publicado em VEJA de 7 de março de 2025, edição nº 2934