Obra reconta saga de Monet para pintar telas de ninfeias no final da vida
O delicioso livro prova que é possível ser revolucionário (e genial) na velhice
A situação do francês Claude Monet (1840-1926) não era nada inspiradora na reta final de 1918. Arrastando-se pelo quarto e último ano, a I Guerra Mundial traumatizava a Europa. Velho, alquebrado e sem ânimo para pintar, Monet chegava perto dos 80 anos vendo os amigos morrer de gripe espanhola. E enfrentava uma tragédia particular: estava ficando cego. “Sinto que tudo está desmoronando, a minha vista e tudo o mais, e já não sou capaz de fazer nada que valha a pena”, desabafou na época. No jardim magnífico que construiu em Giverny, a 64 quilômetros de Paris, o artista em desalento se isolou radicalmente, concentrando forças num único ponto focal: seus lagos de plantas aquáticas. A fixação por aquelas belezas mudaria a história da arte — e é narrada com deliciosa graça em Monet e a Pintura das Ninfeias, que acaba de sair no país.
Para o canadense Ross King, afiado autor de ensaios sobre artistas do passado, as conquistas da juventude e da meia-idade de Monet interessam só na medida em que ajudam a compor seus traços essenciais. O que se flagra no livro não é o iconoclasta que escandalizou a academia francesa em 1867, com as pinceladas insolentes dos impressionistas, mas o Monet de glórias reconhecidas da maturidade, que vendia telas a peso de ouro e torrava dinheiro com prazeres sem fim. O principal deles era o jardim de Giverny. Monet se mudou para lá aos 42 anos, e empreendeu uma revolução na propriedade. Amante das plantas e do paisagismo, ele metia as mãos na terra “serelepe como um jovem”, na descrição de um visitante. Dispendia recursos com uma equipe de oito jardineiros, comprou terrenos no entorno e fez reformas grandiosas para ampliar seus ateliês e abrigar a notável coleção de carros — sua outra paixão.
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Passear pela saga de construção desse pequeno Jardim do Edén — que em tempos pré-pandêmicos era visitado por 600 000 turistas ao ano — é uma experiência de que o livro se desincumbe em cores vívidas, das visitas de gente ilustre como o líder francês Georges Clemenceau aos banquetes com assados e vinhos de primeira. Os lagos das ninfeias, plantas exóticas introduzidas no local por Monet, e as pinturas adoradas que as retratam resumem a atmosfera idílica associada à vida do pintor — seu trabalho era tido como um “grande antidepressivo”. Mas essa é uma visão superficial desmontada com afinco por King.
Por trás da tranquilidade contemplativa das ninfeias, há um turbilhão de tormentos pessoais e labor criativo. Com sua obsessão em retratar as texturas efêmeras da superfície da água, cujos tons variavam conforme a luz, Monet buscava captar o “nada insondável” da existência, enquanto o mundo lá fora se despedaçava na guerra. Ele iniciou as imensas telas, com até 5 metros de largura, ainda na meia-idade, mas foi na velhice que obteve os resultados mais assombrosos. Conforme ia perdendo a visão, as pinturas foram se dissolvendo em borrões de cores e sombras indefiníveis, antecipando em décadas tendências como o expressionismo abstrato.
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Após sua morte, em 1926, aos 86 anos, as telas expostas em museus como o L’Orangerie, em Paris, tiveram anos de ostracismo, em razão da concorrência de novos modismos. Mas, no fim dos anos 50, as ninfeias foram redescobertas, e hoje provocam filas em qualquer lugar do mundo. Com a história de beleza e dor vivida em seu jardim, Monet se somou a mestres como Michelangelo e Rembrandt na capacidade de extrair das limitações físicas da idade uma força descomunal e libertadora. O que parecia seu fim, quem diria, era apenas o começo.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732
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