Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

O que Merquior, um visionário “liberal-raiz”, ensina ao Brasil de hoje

O lançamento de uma coletânea de ensaios do diplomata e sociólogo sobre o tema evidencia que suas ideias continuam atuais - e deveriam ser resgatadas

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 20 Maio 2020, 16h22 - Publicado em 20 Maio 2020, 16h20

Há quarenta anos, o diplomata, sociólogo e crítico literário José Guilherme Merquior (1941-1991) sintetizava a noção do que é liberalismo nos seguintes termos: “uma dose inata de desconfiança ante o poder.” Daí decorria o primeiro princípio liberal: “o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o poder”. No artigo em questão, intitulado O Argumento Liberal, Merquior acrescentava ainda à descrição do núcleo central das ideias liberais “a liberdade civil”, amparada e garantida pelo “estado enquanto foco emissor de direito”, a valorização da individualidade e a busca pela combinação de eficácia econômica, justiça social e igualdade individual, tal como preconizada por John Maynard Keynes.

São esses, entre outros, os aspectos decisivos da tradição liberal que informam o pensamento do autor brasileiro. O leitor de O Argumento Liberal, coletânea de ensaios e artigos (quase todos para a imprensa) originalmente lançada em 1983 e que agora volta a público em edição da É Realizações, poderá avaliar a profundidade, a qualidade e a honestidade das análises de Merquior a respeito do liberalismo e de toda uma variedade de temas filosóficos, históricos e políticos que estão no horizonte deste brilhante e desconcertante livro.

O brilho é já conhecido de todo leitor da obra deste precoce intelectual brasileiro (estreia sua coluna de crítica literária no Jornal do Brasil aos 18 anos). Com clareza e conhecimento de causa, Merquior consegue expor ao grande público leitor dos jornais um repertório amplo e complexo. Da filosofia de um Giambattista Vico e de um Immanuel Kant, passando por temas como a história das ideias econômicas e o direito, à recepção crítica de seus contemporâneos como o pensador francês Claude Lefort e a professora da USP Marilena Chauí, encontra-se nos artigos de Merquior um compromisso inegociável com o aperfeiçoamento humano por meio do saber e da cultura, com e o debate e o esclarecimento públicos – uma verdadeira “paixão pela razão”, frase que dá título ao documentário produzido pela É Realizações e a que todo comprador do livro tem acesso mediante um código digital específico.

Esse entusiasmo otimista abre o livro em sua apresentação, com a afirmação categórica de seu autor: “esse livro se baseia na convicção de que tanto o saber quanto a história – a lógica do conhecimento e a lógica da experiência – estão do lado da democracia liberal”, reconhecendo na “argumentação liberal”, por seu caráter racional, objetivo e plural, o melhor antídoto contra toda forma de obscurantismo, de qualquer tipo intelectual e de qualquer parte do espectro ideológico. Trata-se do otimismo de um homem comprometido irremediavelmente com o legado do Iluminismo: o progresso do conhecimento e da técnica e a real melhoria da vida e da condição humanas que disso resultara. Não é acaso que Merquior afirme, no espírito de Kant, que a tarefa intelectual não é “humanizar o conhecimento” – isto é, as ciências –, mas sim preservar seu rigor para que o conhecimento melhore a vida humana. Seu liberalismo é um iluminismo – e, por isso mesmo, é um humanismo.

Saltará aos olhos do leitor atual o compromisso de Merquior com esse vibrante otimismo iluminista em cada crítica feita a ideologias e modas intelectuais que não eram mais que sermões irracionalistas e irresponsáveis. De temas marxistas em voga então (como o debate sobre “dialética”) ao desfile de “modas” acadêmicas europeias (como a variante pós-moderna), Merquior fustigará os inimigos da razão e da objetividade com argumentos eruditos e precisos. Será, contudo, no núcleo duro da compreensão do liberalismo que esse engajamento humanista há de se mostrar mais
surpreendente ao leitor de hoje. Ao escrever sobre os “neoliberais”, que experimentavam o auge de seu prestígio no mundo ocidental com a influência das ideias de economistas como o Nobel Friedrich Hayek, Merquior afirmará com vigor e senso crítico que “a desestatização completa é, no mundo moderno, uma completa miragem – e nos países em desenvolvimento, o caminho da injustiça e da estagnação”, reafirmando, assim, suas convicções no que chamava de social liberalismo – um liberalismo que não fosse jamais reduzido a certas posições econômicas privatizantes.

Continua após a publicidade
3d-argumento255
Livro “O Argumento Liberal” de José Guilherme Merquior (//Divulgação)

Tanto no artigo que dá nome ao livro, quanto em outros momentos desta notável coletânea, Merquior insiste em preservar o lugar das preocupações com a liberdade econômica – indiscutivelmente importante – com um conjunto de princípios e de ideias mais amplos e que são indissociáveis da história e do conceito de liberalismo e de sua mais nobre e correta compreensão: a contenção do poder por meio da divisão dos poderes e do imperativo do consentimento individual; a preservação dos direitos de minorias; a ampliação das liberdades individuais e políticas; resultando, sobretudo no século XX, “naquilo que Raymond Aron chama de síntese democrático-liberal: o complexo de direitos civis, políticos e sociais acatados pelas democracias industriais avançadas, e que combinam várias liberdades, nos dois sentidos básicos de participação e não impedimento”. Apaixonado pela razão, Merquior era capaz de sínteses intelectuais impressionantes como esta, em que, em poucas linhas, o cerno do pensamento de Montesquieu, de John Locke, de Benjamin Constant, de John Stuart Mill e de Aron emerge no texto em uma formulação lapidar precisa.

Quase quatro décadas após o lançamento original do livro, o que nele desconcerta é a distância que o separa do Brasil de 2020. A visão do autor acerca do liberalismo não vingou – política e intelectualmente, fracassou sem deixar frutos. No Brasil atual, em que triunfou um mórbido liberalismo que se esgota em privatismo vulgar, que vem de par com o elogio à ditadura, o louvor a torturadores, o desprezo à ciência e à informação, a brutalidade como conduta e o ódio como moeda corrente, é difícil reconhecer em José Guilherme Merquior um representante legítimo das ideias
liberais. Mas é precisamente por esse fracasso desconcertante do liberalismo brasileiro que o humanismo culto, cosmopolita e otimista que define essencialmente o liberalismo de Merquior deve ser reivindicado hoje como forma de resistência civilizada ao horror, servindo de aposta esclarecida no futuro.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.