O púlpito de Damares
Algumas das falas da ministra que as redes sociais adoram replicar nasceram em pregações nas filiais da Igreja da Lagoinha, onde ela é pastora
O cenário tem paredes pintadas de preto, telões coloridos, fumaça artificial e música alta. Durante quase uma hora, seis cantores dividem o palco, diante de uma plateia de cerca de 600 fãs que dançam, gritam e agitam os braços, a maioria jovens descolados – eles de calça jeans rasgada e camiseta de grife, elas de salto alto, maquiagem impecável e penteados modernos. O endereço do espetáculo já acomodou casas de show famosas, mas atualmente quem chega ao número 679 da Praia de Charitas, em Niterói, com vista privilegiada para a Baía da Guanabara, encontra uma filial da Igreja Batista da Lagoinha (IBL), denominação nascida em Belo Horizonte que milita nas hostes das chamadas megachurches, onde bandas animadíssimas abrem e fecham as pregações. Com seus quase 90 000 membros, a IBL não tem o calibre de uma Universal do Reino de Deus (1,8 milhão de afiliados, segundo o Censo de 2010), mas ficou conhecida graças à pastora Damares Alves, hoje ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro.
Damares foi voluntária na sede belo-horizontina e em seu púlpito proferiu algumas das tiradas que o YouTube eternizou e os detratores espalharam nas redes, como o relato de uma visão de Jesus em uma goiabeira e a afirmação de que estão ensinando “bruxaria” nas escolas. O discurso conservador radical da ministra, com frequentes menções a questões sexuais e de gênero, não é marca da Lagoinha, garantem os estudiosos de religiões. A IBL, que tem quarenta igrejas no Brasil e doze no exterior, segue, sim, a cartilha evangélica contrária ao aborto e ao casamento entre homossexuais, por exemplo, mas está mais preocupada em preservar sua imagem moderninha do que em bater na tecla de “menino veste azul, menina veste rosa”. “Em termos de linguagem, Damares é um corpo estranho à Lagoinha. A raiz de sua fala está na Igreja Quadrangular, na qual ela foi formada, e é muito mais afeita a pautas comportamentais”, explica a antropóloga Lídice Meyer, professora da pós-graduação em ciências da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo.
Na Lagoinha, a catequese é acima de tudo musical, e sua manifestação mais poderosa é a banda gospel Diante do Trono, que já vendeu mais de 15 milhões de discos e chegou a ser indicada ao Grammy Latino, em 2012. A líder da banda, fundada em 1998, é Ana Paula Valadão, de 42 anos, a primogênita dos três filhos de Márcio Valadão, comandante da igreja e pastor principal do templo de Belo Horizonte, onde Damares ministra, no caso, o Evangelho. A decoração com jeito de danceteria, porém, é mais recente: surgiu em 2013, com a abertura da filial de Niterói, a primeira no Estado do Rio, sob o comando de outra filha do patriarca, Mariana, e do marido dela, Felippe Valadão (ele informa que o sobrenome é pura coincidência).
Em uma viagem a Nova York, Felippe conheceu a Hillsong, igreja de origem australiana que inventou o modelo de pregação misturada com show musical em cenário de boate pop. Entre suas diversas bandas, a mais popular, Hillsong United, frequenta o topo da parada gospel da Billboard americana, a bíblia do setor. “Eu vi e pensei: é isso. Os caras entenderam direitinho como se faz para atrair quem não é cristão”, diz o pastor de 36 anos. Em 2016, o conceito chegou à sede mineira. “Meu sogro veio passar uns dias aqui no Rio e meu cunhado, André, falou: ‘Segura o coroa aí que vamos pintar tudo de preto’ ”, lembra, rindo.
O objetivo é fazer da frequência a uma igreja da Lagoinha algo próximo a uma ida ao cinema ou ao teatro. “O jovem gosta de estímulo visual. E a música é muito empolgante. A Lagoinha é um ambiente divertido e se torna um ponto de encontro que extrapola os momentos de oração”, relata, empolgada, a estudante Samara Reis, de 18 anos, frequentadora há dois anos. “Imagina: você chega a um lugar com cadeiras quebradas, sem ar condicionado, sem música. A mensagem pode ser a melhor do mundo, mas não vai te pegar. Aqui, os cultos são atraentes e confortáveis”, concorda o universitário João Ferraz, de 18 anos. No templo de Niterói, que acomoda 4 500 pessoas, a equipe de recepção, que fica na porta dando as boas-vindas e ajudando a achar lugar, tem 400 integrantes. Dentro, os frequentadores podem se servir de café com biscoitos e água aromatizada. Em um pátio anexo, food trucks oferecem “pipoca gourmet” e hambúrguer. “Nós investimos muito tempo no preparo do culto. Encaramos cada um como um grande evento, um show”, explica Higor Medeiros, um dos organizadores.
Em seus cultos, Felippe, logo na abertura, define-se como o “pastor da calça coladinha”. “Não gosto desse negócio de fazer cosplay de crente”, diz, desdenhando o típico terno mal cortado e gravata. Em certo momento, anuncia-se a coleta, mas com discrição. “Falo rapidinho porque fico sem graça de pedir dinheiro”, diz o pastor, avesso à “teologia da prosperidade” pregada por muitas igrejas evangélicas. A IBL já foi mais pentecostal — seus fundadores se afastaram da Igreja Batista justamente por apoiarem os cultos que promovem o que chamam de “manifestações visíveis do Espírito Santo”. Até hoje, um ou outro Valadão derrapa na abordagem contemporânea que a igreja vem adotando nos últimos anos. Em um vídeo de 2013, Ana Paula aparece imitando “o leão de Judá” em pleno palco, episódio que, a família garante, ficou no passado. Em janeiro deste ano, o filho do meio, André, de 40 anos, lançou um certo “cartão de crédito Fé”, durante um culto na Lagoinha de Orlando, onde ele mora. Causou zum-zum-zum nas redes sociais e, no dia seguinte, Valadão pai emitiu uma nota negando a relação entre o cartão e a igreja. A iniciativa, afirmou, restringe-se à compra de produtos gospel da marca Fé, administrada por André.
Ciosos da atitude compreensiva e aberta que gostam de alardear, os líderes da Lagoinha adotam o bom humor em relação à ministra Damares, a fiel mais ilustre. “Acho que nem ela acredita em tudo o que fala”, brinca Felippe, ressalvando que a considera plenamente habilitada a comandar a pasta em suas mãos. Desde sua nomeação, Damares não aparece muito na igreja, da qual se aproximou em meados de 2016, mas os jovens frequentadores em geral falam dela com admiração. Essa postura conservadora por baixo da roupagem moderna não surpreende o filósofo Luiz Felipe Pondé, que diz já ter visto alunos seus de ciências da religião se converter durante trabalhos de faculdade. “Mais do que mudar o estado das coisas, o jovem quer ter o que fazer no fim de semana, ir a uma baladinha e se sentir parte da turma”, afirma Pondé. Os jovens que agitam os braços no ar diante do palco da Lagoinha dizem amém.
Com reportagem de Bruna Motta
Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br