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O mago das fantasias

Autor dos figurinos de nove entre dez estrelas no Carnaval, Henrique Filho não fez faculdade e detesta badalação

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h53 - Publicado em 15 fev 2019, 07h00

Apesar de tudo, haverá Carnaval no Rio de Janeiro. Como a vida continua, e quem gosta de miséria é intelectual, na máxima inesquecível de Joãosinho Trinta, convém prestar atenção numa figura: Henrique Filho, de 60 anos, autor de algumas das mais badaladas fantasias de celebridades da avenida, cuja discrição é o avesso de suas engenhosas criações. Há dezesseis anos, quando desfilava para a Portela, Adriane Galisteu recebeu a fantasia elaborada pelo barracão da escola apenas 24 horas antes do desfile. Ficou em pânico. O traje era um mísero tapa-sexo. Desesperada, ela ligou para quem era uma majestade no quesito “brilhar na Sapucaí”: Luma de Oliveira, a rainha de bateria de outra escola, a Caprichosos de Pilares. Luma não vacilou, e imediatamente acionou Henrique Filho. Com o acervo que tinha em casa, ele varou a madrugada bordando maiô, sandálias e um adereço de cabeça. Pronto: a composição rendeu à apresentadora a capa dos principais jornais depois do samba. Os dois tornaram-se inseparáveis.

Não há exagero em dizer, entre os que entendem de pé no asfalto, que as artes do estilista da folia estão para a temporada carnavalesca como Yves Saint Laurent está para a alta-costura. “Pode parecer simples, mas transformar uma fantasia de metal em um tecido fino e confortável dá um trabalho danado”, diz a cliente Sabrina Sato, frequentadora assídua do casarão do artista que serve de ateliê. Localizado na Glória, no centro do Rio, o lugar lembra uma oficina mecânica, mas com lustres de cristal. A manufatura de lâminas de ferro finas como um tafetá é realizada com maçarico. Os pontos de costura não podem encostar na pele, sob o risco de virarem uma navalha. “Querido, não tem segredo: beleza sem conforto não faz nenhuma menina sambar bem”, diz Henrique Filho, categórico, pontuando a frase com sua palavra mais querida: querido. Homem de opiniões fortes, ele aboliu as penas. “O mundo mudou, não tem cabimento usá-las”, resume. Trocou a pena de faisão pelo capim-barba-de-­bode. Crina de cavalo ainda pode. “Não se mata o animal para conseguir essa matéria-prima”, justifica.

Natural de Bela Vista do Paraíso, no Paraná, ele é o segundo de dez filhos de um militar e de uma dona de casa. Nunca cursou faculdade. Aprendeu o ofício de modelista em uma loja de tecidos em Campinas, para onde se mudou aos 18 anos. Suas primeiras fantasias foram feitas para os amigos. Nos anos 1980, depois de ceder à insistência dos colegas que anteviam o sucesso, o costureiro amador deixou de pagar o aluguel para patrocinar sua primeira ida ao Carnaval carioca. Ficou alucinado ao ver Clara Nunes desfilando pela Portela. Seis meses depois, mudou-se para a cidade.

Luma de Oliveira, Sabrina Sato e Gracyanne Barbosa
É FOGO! Luma, Sabrina e Gracyanne, algumas das clientes: maçarico para deixar maleável o ferro das fantasias (Paulo Jares/VEJA - Daniel Pinheiro/AGNews - Bruna Prado/UOL/Folhapress)

Seu destino, então, esbarrou em Xuxa. Depois de estrear na Globo em 1986, a apresentadora ainda não tinha definido um caminho para seu figurino de palco. Foi quando um produtor de Xuxa chamou Henrique Filho, a quem encomendou algumas peças para testar. “Fiz mais de 500 figurinos para a Xuxa”, diz. Então veio Luma, indicada por um amigo sapateiro. Ela queria algo mais suntuoso e extravagante, que fugisse das penas nas costas ostentadas por todas as passistas. Seguiram-se mais de quinze anos de parceria na forma de modelos. O mais comentado foi o modelito de mulher­-gato, usado por ela, em 1998, no desfile da Tradição: corselete de veludo francês e cristais, além da inesquecível coleira cravejada com o nome de Eike Batista. “Foi fetiche puro de um país ver a mulher mais desejada de todas levar o nome do então marido no pescoço.” Uma curiosidade sobre o episódio: depois do desfile, Luma foi retocar a maquiagem no banheiro e esqueceu por lá o acessório. Quando voltou, vupt, alguém tinha se apropriado da coleira. Henrique Filho imediatamente tratou de montar uma segunda versão, que depois seria vista nas sessões de fotos da deusa.

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Ele cresceu e apareceu numa janela de oportunidade. Até os anos 80, as fantasias eram confeccionadas pelos barracões das escolas. À medida que as musas passaram a ganhar muito dinheiro com a exposição do desfile, elas começaram a investir em costureiros particulares. “Os acabamentos eram péssimos, a roupa era feita para a TV e a avenida e depois ia para o lixo”, diz o historiador da moda Marco Sabino. Henrique Filho deu um salto de qualidade. Antes dele, era tudo muito mambembe (e ainda é, em parte). Em 2016, a cantora Claudia Leitte usou uma fantasia de mais de 10 quilos à frente da Mocidade. Precisou fazer acupuntura para se livrar de uma lesão nas costas. O ensinamento de quem sabe: “Fantasia, querido, é só até 5 quilos. O resto é penitência”.

Adriane Galisteu e Juliana Paes
ECOLÓGICO - Galisteu (à esq.), em 2007, com penas verdadeiras, e Juliana Paes, em 2018, com as falsas: “O mundo mudou” (Rogério Cassimiro/Folhapress - Cristina Novinsky/Futura Press)

Como conhecimento custa caro, as peças saem por algo em torno de 70 000 reais. Sabrina Sato, que encomendou duas fantasias (Vila Isabel, no Rio, e Gaviões da Fiel, em São Paulo) e roupas para ensaio técnico, morreu em 300 000 reais. Dados os preços, há quem alegue não conseguir pagar do próprio bolso, como faz, feliz da vida, Gracyanne Barbosa. A escola Grande Rio banca a fantasia de Juliana Paes. Outra estilista muito requisitada, Michelly Xis, cobra a metade do concorrente.

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E, no entanto, Henrique Filho odeia a badalação movida a dinheiro. Não posta foto ao lado de suas clientes famosas. É um quase anônimo, sobretudo depois da Quarta-Feira de Cinzas. No resto do ano, ele vive de fazer vestidos de noiva e de festa. “Tinha muitas clientes enroladas na Lava-Jato; elas desapareceram. O Brasil é assim”, resigna-se. Pois é, querido.

Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622

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