O debate feroz sobre parceria da Louis Vuitton com artista japonesa
Em questão, a exploração de nomes da arte como marca
Uma das marcas de luxo mais famosas do mundo, a Louis Vuitton atrai milhares de curiosos para suas lojas. Na última semana, a filial de Nova York, localizada na movimentada Quinta Avenida, ganhou uma atração extra: uma versão robótica da popular artista japonesa Yayoi Kusama, de 93 anos, substitui os tradicionais manequins na vitrine e chama a atenção dos transeuntes com movimentos que simulam pinceladas. A ação divulga a nova parceria ambiciosa da marca com Kusama: lançada em janeiro, pouco mais de dez anos depois de seu primeiro trabalho em conjunto, em 2012, a coleção leva para os mostruários de luxo mais de 400 peças inspiradas no trabalho da japonesa, marcado por uma explosão de bolinhas coloridas e esferas metálicas que agora decoram bolsas, óculos e vestimentas.
Com um padrão de estampa repetitivo e peças luxuosas que beiram os 30 000 reais, a coleção reacende um debate antigo: até que ponto a obra de um artista pode ser explorada como marca sem que se torne meramente um item comercial? O brasileiro Romero Britto ganhou status global com quadros coloridos e geométricos pueris, hoje repetidos à exaustão em produtos licenciados, entre eles bolsas, canecas e pequenas esculturas. Na Inglaterra, o tema foi motivo de troca de farpas: em 2012, o britânico David Hockney alfinetou o compatriota Damien Hirst pelos quadros que reproduzem pontos coloridos em fileiras, pintados por assistentes do artista e vendidos por milhões — na época, o jornal americano The New York Times contabilizou que Hirst havia pintado apenas cinco dos 1 400 quadros produzidos até então.
No caso da parceria de Kusama com a Louis Vuitton, as bolas são reproduzidas por uma serigrafia especial e aplicadas nas peças. O que vale, no final, não é a habilidade da artista em si, mas a assinatura que acompanha os itens. É como se ela, por si só, fosse um selo de autenticidade reproduzido em série. A marca francesa, inclusive, radicalizou a ideia criando não apenas itens personalizados e caríssimos inspirados em Kusama, mas também investindo numa divulgação que se estende dos ensaios de supermodelos a filtros para as redes sociais, e até um joguinho que guia o cliente na descoberta da coleção. Tudo, é claro, “instagramável” o suficiente para surfar na efervescência digital que hoje pauta as grandes marcas.
Yayoi Kusama: From Here to Infinity!
Alçada ao cenário global como inovadora e prolífica, Kusama usa as cores e materiais para criar um universo próprio em intervenções e esculturas famosas pelo mundo afora. Sua obsessão pelas bolas e pontos tem uma razão triste: é fruto da esquizofrenia que a atormenta desde a infância. Kusama mora em uma instituição psiquiátrica há mais de quarenta anos, e costuma ligar sua obra às visões causadas pela doença. Nascida em Matsumoto, em 1929, a artista se mudou para Nova York em 1957, circulando com figuras consagradas como Andy Warhol — mentor da arte pop e ele próprio um mestre da produção em série e exploração comercial da arte.
Desde então uma figura pop, a artista fez a primeira parceria com a marca francesa em 2012. Foi um sucesso, transformando as peças em artigos colecionáveis e a “arte Kusama” em item cobiçado não só pelo teor artístico, mas como fetiche fashion. Agora, a nova investida intensifica ainda mais a aposta. Bolsas de bolinhas podem não se confundir com arte de verdade — mas dão um lucro inspirador.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
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