O antilagerfeld
Com estilo ativista e sem afetação, Alessandro Michele fez da Gucci a grife mais desejada e copiada do mundo. E, de quebra, quase triplicou o faturamento
O baú do tesouro às vezes se encontra na sala ao lado. Depois de um período sob a direção criativa chocha de Frida Giannini — com vendas razoáveis, mas repercussão nula e zero de arroubo estético —, a Gucci estava em busca de alguém para assumir o exigente posto de estilista da marca. O magnata da moda François-Henri Pinault, dono do grupo Kering, designou o CEO Marco Bizzarri para entrevistar uma série de nomões do mercado, mas não fechou costura com nenhum. Foi então que o executivo decidiu tomar um café com um cabeludo de barba emaranhada que se veste feito um personagem de filme renascentista. Integrante do time de acessórios da Gucci desde 2002, Alessandro Michele discorreu sobre história da arte (sua maior paixão), falou de cinema (estudou moda para ser figurinista) e improvisou teorias sobre a sociedade (para ele, as pessoas hoje não se dividem por gênero, mas por afinidades). Bizzarri ficou encantado com aquela figura excêntrica e sem as afetações típicas do mercado de luxo, e marcou um segundo encontro. Dessa vez, com uma proposta: Michele toparia desenhar uma coleção masculina de 36 looks da Gucci? O detalhe: ela seria apresentada dali a cinco dias, na semana de moda de Milão.
Deu certo, e Michele foi contratado como diretor criativo da grife italiana, nascida em 1921. Foi como se os acionistas da empresa ganhassem na loteria. Michele fez a marca cair no gosto dos jovens logo de cara. Sua primeira invenção foram os tênis que viraram objeto de desejo, muitos com as cores da grife, verde e vermelho, e com estampas de bichos, como besouros e tigres. “Para os millennials, os tênis são o meio de transporte. Essa turma não quer saber de carro”, diz Alexandra Farah, criadora do festival de moda e tecnologia WeAr Brasil.
Sob o comando do novo estilista, a perua italiana clássica saiu de cena para a entrada de uma figura mais intelectualizada e antenada com o mundo. Michele junta a rua do Harlem e o glamour de Hollywood no mesmo visual. Sua roupa é fluida, planejada para todos os consumidores. Uma de suas coleções mais famosas, batizada de Ciborgue, foi apresentada no cenário de uma enfermaria, com macas. As modelos seguravam réplicas da própria cabeça, moldadas ao longo de seis meses, no que pretendia ser uma metáfora para a liberdade de cada indivíduo ser o que quiser.
Sintonizado com a sensibilidade verde, Michele abdicou em definitivo das peles de animais. A pobre chinchila, por exemplo, foi matéria-prima de casacos por quase um século. A medida foi seguida pelos concorrentes Versace e Burberry — menos por bondade, mais para agradar a uma clientela cada vez mais preocupada em propagandear sua pureza.
Essas mudanças fizeram a Gucci quase triplicar os negócios. Em 2014, a grife faturou 3,2 bilhões de euros. Em 2018, esse valor saltou para 8,2 bi. A Gucci tem hoje mais de 14.000 funcionários no mundo e 540 lojas — oito no Brasil.
Capturar o espírito do tempo sem que isso pareça estratégia de marketing não é fácil. Mas Michele faz tudo parecer autêntico. Formado pela Accademia di Costume e di Moda di Roma, ele detesta o exibicionismo das redes sociais. Seu marketing não consiste em acomodar blogueiras ou críticos de moda na primeira fila dos desfiles, mas em convidar figuras descoladas como Jared Leto, Lana Del Rey — ou o veterano Elton John. Assim como Karl Lagerfeld, Michele usa anel em todos os dedos, cabelo comprido e é magistral no desenho de roupas. Mas o estilista alemão, à frente da Chanel, era arrogante, detestava gordas e só saía de casa acompanhado de seguranças. Michele faz o tipo oposto e não perde o costume de ir à feira aos sábados de manhã na vila onde mora, nos arredores de Roma.
Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625
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