Novo livro revela os desafios das publicações póstumas de Fernando Pessoa
Uma antologia completa, com material inédito de Ricardo Reis, expõe a genialidade do autor na criação de seus heterônimos
Nascido em Lisboa em 1888, Fernando Pessoa veio ao mundo em uma época de ressentimentos. Portugal imaginava como o país estaria se o sucesso das expedições marítimas tivesse se convertido em riqueza para a sociedade portuguesa — ao contrário de seu uso para a ostentação da corte e o pagamento de dívidas a outros países. Na vida pessoal, o poeta presenciou acontecimentos sombrios. Quando criança perdeu o pai e o irmão mais novo, ainda bebê, para a tuberculose e viu a mãe trocando a melancolia do luto pela euforia de um novo romance. Tornou-se reservado, discreto, com poucos amigos e quase nenhum envolvimento amoroso. Uma incógnita para muitos — e que até hoje instiga questões. Entre elas a notável capacidade do escritor em se dividir em heterônimos.
Poeta incomparável da língua portuguesa, desde menino Pessoa dizia conviver com essas personalidades, que não eram apenas amigos imaginários. “Eram gente”, anotou em uma de suas muitas obras nunca publicadas. Reside aí outra peculiaridade do autor. Desorganizado, ele escrevia em pedaços de papel soltos, aleatórios, e era dono de um baú de riquezas escritas que ainda estão sendo descobertas pouco a pouco. Dessa fonte acaba de sair a Obra Completa de Ricardo Reis, publicação da Tinta-da-China Brasil que chega às livrarias brasileiras neste sábado, 8. Organizado pelos pesquisadores colombianos Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, a obra é a primeira no Brasil a reunir toda a poesia e prosa de Reis, um dos principais heterônimos de Pessoa, além de dois poemas inéditos e imagens de manuscritos e anotações. “Pessoa é nitidamente um autor póstumo. É muito mais um escritor nosso do que de sua época. Se torna nosso porque está a ser publicado, construído e conhecido nos dias de hoje”, defende Pizarro.
Como traço de seus métodos confusos, Pessoa não deu conta de apresentar Ricardo Reis totalmente em vida: foram menos de trinta poemas publicados, frente a uma obra de mais de 200 peças que viriam mais tarde. No perfil criado pelo autor, Reis era um médico português melancólico afinado ao classicismo grego. Era também um ano mais velho que Pessoa — interessado em astrologia, o poeta usava conhecimentos da área na criação de seus heterônimos. No livro há um pequeno mapa astral que define dia, local e horário do nascimento do personagem: a quem interessar possa, Ricardo Reis era virginiano.
A existência dos heterônimos de Fernando Pessoa, diferentes de seu poeta criador e entre si, recusa a simples alcunha de “pseudônimo”. Em 1928, ele cravou que “a obra pseudônima é do autor em sua própria pessoa, no nome que ele assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele”. O trio de personas mais populares de sua obra deixa esse conceito claro: enquanto Reis era mais racional, Álvaro de Campos era emotivo e colérico, e Alberto Caeiro, um fleumático introspectivo. Segundo os pesquisadores, Reis traz a retroguarda que simboliza o equilíbrio em uma era de mudança social, marcada pela Primeira Guerra Mundial, que estourou no ano em que Pessoa publicou os primeiros textos de seus heterônimos.
Em O Regresso dos Deuses, ensaio escrito por Reis e António Mora, semi-heterônimo de Pessoa — ou seja, perfil mais próximo do autor original —, há a exaltação dos ideais gregos como um espelho ideal para o mundo moderno. “Tudo posterior à Grécia tem sido um erro e um desvio. As nossas instituições políticas sofrem do coletivismo romano e do sentimentalismo cristão”, atestam. Assim como Pessoa culpava a Igreja Católica pela estagnação de Portugal, Reis era crítico da religião cristã e chegado aos ideais paganistas, acreditando que a divindade se manifestava por meio da natureza. Pessoa morreu em 1935, aos 47 anos, vítima de uma cirrose hepática, consequência do alcoolismo. Sofreu episódios de depressão e, sugerem estudiosos, pode ter sido acometido por distúrbios mentais que lhe deram o caráter fragmentado. Tais informações dão novo entendimento à frase de Ricardo Reis que diz: “para ser grande, sê inteiro”. Assim, o inesquecível poeta foi tudo o que pôde.
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2025, edição nº 2969
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