Novo livro de Chico Buarque impõe reflexão em torno de um Brasil rachado
'Essa Gente' aproxima o escritor do compositor ao passear com delicadeza e pessimismo por um país que se perdeu sabe-se lá onde
Não há como ler o novo romance de Chico Buarque, Essa Gente, sem ter em perspectiva o fato de ele haver nascido das ideias e da percepção aguçada de um compositor sem o qual o Brasil seria outro. Há um modo inegável de acompanhar os humores e amores da recente história do país: por meio das canções de Chico. Em Construção, de 1971, no auge da ditadura militar, ele desenhou o cotidiano amargo do operário de “olhos embotados de cimento e lágrima”, que “sentou para descansar como se fosse sábado”, num inesquecível edifício de proparoxítonas. Quando os ares pareciam mais respiráveis, e já era possível e compulsório pedir algum socorro, Meu Caro Amigo, de 1976, foi uma carta gravada para informar que “aqui na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e rock and roll / uns dias chove, noutros dias bate sol / mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”. Em 1984, nos estertores da escuridão, um manifesto em forma de samba-enredo a antecipar os dias democráticos alertava, como um farol: “Vai passar / nessa avenida um samba popular / cada paralelepípedo / da velha cidade / essa noite vai se arrepiar”. Sempre houve, em seus versos, como nos de todo poeta fingidor, uma mágica: falar de amor, mas parecer estar tratando de política; cutucar as questões coletivas, mas querer mesmo estar entre os mais íntimos dos lençóis. As composições de Chico Buarque dão a sensação de se estar atravessando um tomo de história ou uma antologia da vida privada (tudo somado à adorável possibilidade de cantarolá-las, e parece improvável que se leiam os trechos que abrem esta resenha sem colá-los às melodias que os fizeram adesivos).
Na poesia foi sempre assim, o dizer alguma coisa para iluminar outra — sem jamais perder de vista a força cortante das metáforas, porque faca igual não existe. Na MPB, Chico é um totem incontornável, carbono do que somos ou um dia imaginávamos ser, apesar da acidez atual. Na prosa é diferente. A literatura de Chico Buarque, desde Estorvo (1991) até O Irmão Alemão (2014), em cinco romances, segue outra estrada, como se o autor estivesse farto do Chico dos discos e dos shows, cansado de levar o mundo nos ombros, pela razão e pela emoção (a exceção que confirma a regra, avant la lettre, foi Fazenda Modelo, de 1974, uma Revolução dos Bichos ao avesso, evidentemente atrelada aos nós do cotidiano). Na literatura, Chico foi sempre mais frio, mais distante, narrador razoavelmente apartado de seus temas. Não que o desencanto e o pessimismo nas letras dos anos 1970 e 1980 já não antecipassem o que culminaria com Estorvo (“vinha nego humilhado / vinha morto-vivo / vinha flagelado / de tudo que é lado / vinha um bom motivo pra te esfolar”, de Não Sonho Mais, do álbum Vida, de 1980). Para o editor e escritor Tiago Ferro, autor de O Pai da Menina Morta, romance finalista do Prêmio Jabuti, estudioso da obra literária de Chico Buarque, “as canções já eram insuficientes para captar aquele momento histórico, para mostrar no que havia dado a longa noite da ditadura, um país violento, perverso e aparentemente sem saída”. E Chico foi pousar nas estantes.
O desencanto e o pessimismo nas letras das canções dos anos 1970 e 1980 já antecipavam o que culminaria na literatura
Essa Gente, que chega às livrarias na quinta-feira 14, é um excelente romance colado a um diário, com anotações, mensagens enviadas e recebidas, entre dezembro de 2016 e setembro de 2019, atalho para o Brasil do aqui e agora. Apesar de o recorte parecer óbvio, o tempo em que uma presidente foi impedida, um ex-presidente foi preso e o Brasil caiu nas mãos de um saudosista do autoritarismo, cujo filho defende o retorno do AI-5, nada em suas páginas é evidente. O que vale, como nas canções, são as coisas não ditas. Não se busque em Essa Gente um corolário das mazelas do Brasil, um manual de ódio para quem não gosta de Chico, desde que ele passou a ser xingado porque nunca recuou de suas convicções; ou um mapa de adoração para quem o põe no pedestal dos intocáveis. Não se espere um panfleto, apenas porque empurraram Chico para um canto da guerra política, o que inclui apoio incondicional a Dilma Rousseff e Lula. O livro tem nuances mais inteligentes. É um delicado (e invariavelmente cômico, embora descrente) relato, apesar da aspereza, a impor reflexão em torno do Brasil rachado ao meio — o estúpido fosso social, os vãos ideológicos, tudo aquilo que nos trouxe até aqui. É como se os personagens de Essa Gente dissessem: “Preste atenção”, eis o Brasil como ficou. Ou então: em que momento o vaso trincou a ponto de uma certa unanimidade nacional — o próprio Chico — agora ser encurralado nas ruas por gente que pensa diferente?
O nome do personagem central de Essa Gente faz lembrar o de seu criador: é Manuel Duarte, autor de um romance histórico, O Eunuco do Paço Real. Decadente, endividado, ele tem um filho adolescente com quem não troca palavra e duas ex-mulheres (uma tradutora e uma decoradora). A cercá-lo, revelam as anotações, há um Rio de Janeiro que sangra entre a pobreza e a solidão. O caleidoscópio, evidenciado pelo quebra-cabeça fragmentado das curtas entradas do diário, expõe uma multidão de bizarrices que, sem a chave da ironia, soaria inverossímil. Há o pastor evangélico da Igreja da Bem-Aventurança ligado a um maestro italiano que castra jovens pobres para abastecer o mercado internacional de canto lírico. Há o mendigo que apanha de um sócio do Country Club. O filho de militantes de esquerda que sofre bullying na escola. Na pena de um escritor qualquer, o risco de desandar para o preto no branco seria imenso. Na narrativa de Chico há vasta porção de cinza, é tudo mais sutil, mais lírico, costurado por paixões e suspense policial. Se os outros livros de Chico Buarque foram sempre primos distantes de sua produção musical, Essa Gente é como um irmão. Ecoa a letra do clássico imediato de seu mais recente disco, As Caravanas: “Esses estranhos / suburbanos tipo muçulmanos / do Jacarezinho / a caminho do Jardim de Alá”. É o Chico Buarque compositor de mãos dadas com o Chico Buarque escritor, como se repetissem Carlos Drummond de Andrade musicado por Milton Nascimento, ambos um tanto esquecidos: “Eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”.
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Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660