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Novas edições provam que obra de Graciliano Ramos está vivíssima

Com a entrada dos textos em domínio público, o autor que expôs as mazelas do país com sua escrita sem firulas ganha duas edições excepcionais

Por Diego Braga Norte Atualizado em 4 jun 2024, 09h31 - Publicado em 14 jan 2024, 08h00

No dia 20 de março de 1953, o Brasil perdeu um de seus maiores escritores: o alagoano Graciliano Ramos. Vitimado por um câncer de pulmão aos 60 anos, o “velho Graça” deixou uma obra que só ganhou relevo desde então: em romances como Vidas Secas, o autor usou sua prosa enxuta e de rigor inabalável para expor mazelas do país, da seca no Nordeste à hipocrisia nas relações sociais. Agora, Graciliano prova mais uma vez que continua vivíssimo. De acordo com a legislação nacional, a obra de um autor entra em domínio público no ano seguinte ao aniversário de 70 anos de sua morte. Logo, a partir deste ano, seus escritos estão livres de direitos de autorais — algo que simplifica negociações com herdeiros e barateia a publicação. Sem perder tempo, a editora Todavia está reeditando o autor com a colaboração de Thiago Mio Salla, professor da Universidade de São Paulo que é especialista em sua obra.

Angústia

Os dois primeiros tomos da empreitada são Angústia, de 1936, e o inédito Os Filhos da Coruja, que sai pela Baião, selo infantojuvenil da editora. Mio Salla, que coordena pesquisas no acervo do autor abrigado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, conta que a descoberta do inédito é recente, do ano passado. O manuscrito, uma poesia de verso livre, teve sua autenticidade comprovada pela assinatura do pseudônimo J. Calisto, comum nos textos de início da carreira, e pela caligrafia — Graciliano só escrevia a mão.

ANGÚSTIA E OS FILHOS DA CORUJA, de Graciliano Ramos (Todavia/Baião; 320 e 36 páginas; 64,90 e 66,90 reais; e 29,90 e 39,90 reais em e-book)
ANGÚSTIA E OS FILHOS DA CORUJA, de Graciliano Ramos (Todavia/Baião; 320 e 36 páginas; 64,90 e 66,90 reais; e 29,90 e 39,90 reais em e-book) (//Divulgação)

O poema reconta a fábula A Águia e o Mocho, popularizada pelo francês La Fontaine. Abrasileirando a história, Graciliano faz menções à seca do Nordeste e, nas belas pinturas que ilustram o volume, o carcará (ave de rapina comum no sertão) faz o papel da águia. Em sua versão, ele desloca o protagonismo do título para os filhos da coruja e altera também a moral da história. Sai a figura da “mãe-coruja”, ultraprotetora e sempre presente, e entra uma mensagem de libertação das asas maternas para a possibilidade de uma vida plena.

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Os Filhos da Coruja

O texto é mais uma amostra do talento de Graciliano como escritor. Assim como no restante de seus livros, o autor narra e descreve os fatos que julga importantes para a narrativa, mas deixa a explicação e o entendimento com os leitores. A opção não é mera generosidade: é respeitosa com a inteligência alheia e importante para a qualidade da obra. A aparente simplicidade de sua linguagem é moldura para enredos e temáticas duros e nada simplistas — um universo literário tão dramático e poderoso quanto as imagens criadas por outro modernista de olhar crítico (e também comunista), o pintor Candido Portinari, em obras como Os Retirantes (1944). “Graciliano sempre teve essa preocupação de discutir o país, tratar de temas que são complexos nos romances e livros de memórias”, afirma Mio Salla.

É fato que grandes obras se renovam com o tempo — daí vem a importância e a perenidade dos cânones. Mas o caso específico de Angústia é exemplar. Os temas abordados revelam-se ainda mais atuais e os locais descritos ganham novo interesse por causa de eventos recentes. O protagonista Luís Pereira da Silva, jornalista sem fama e com aspirações literárias, conta em primeira pessoa como se deu a paixão avassaladora e frustrante por Marina, sua vizinha. O paralelo com Dom Casmurro é óbvio e, assim como na obra machadiana, o narrador não é confiável. Ele fala da desilusão a partir do seu ponto de vista, descrevendo Marina com desprezo e alucinando em alguns momentos; sobretudo, no longo solilóquio final, que dialoga com outro clássico, o trecho final de Ricardo III, de Shakespeare.

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RIGOR - O autor: ele só escrevia a mão e deixou um poema inédito para crianças
RIGOR – O autor: ele só escrevia a mão e deixou um poema inédito para crianças (Arquivo Prensa Três//)

Atenciosa, a edição atual traz uma profusão de notas de rodapé explicando a geografia de Maceió, contextualizando a importância de prédios históricos, cafés e as mudanças ocorridas na cidade. O ápice do livro, as páginas eletrizantes do embate entre Luís e seu rival, o comerciante Julião Tavares, acontece no bairro Bebedouro, próximo à Lagoa Mundaú. É justamente um dos bairros-fantasma que estão afundando devido à exploração de sal-gema pela empresa Braskem. Há ainda muitas menções ao bairro do Farol, reduto da elite alagoana nos anos 1930 e hoje também esvaziado. Além dessa nova visão sobre os cenários, a reedição acena à sensibilidade e ao entendimento de hoje ao destacar o machismo de Silva. “Estúpida. Lia as notas sociais, casamentos, batizados, aniversários, coisas deste gênero. Estúpida”, diz o personagem sobre Marina.

Universo Gráfico de Cândido Portinari

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Luís da Silva é um pobretão frustrado, herdeiro de fazendeiros falidos e subproduto da aristocracia rural decadente. Já Julião é um novo-rico das camadas urbanas em ascensão. Enquanto Luís veste-se mal e mora numa casa com ratos, Julião está sempre impecável e vive numa mansão. Luís culpa o dinheiro de Julião pela perda da amada, mas deixa escapar na narrativa possíveis problemas sexuais. Não consegue consumar uma relação com Marina nem com uma prostituta. Por trás da história de amor interrompida, Graciliano constrói habilmente todo um ambiente social e psicológico singular. Para além da perícia com as palavras, afinal, ele é um intérprete contundente — e necessário — do Brasil.

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875

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