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Milton Hatoum: ‘Nossa miséria política é resultado da ditadura’

Autor do livro ‘Dois Irmãos’, adaptado para a TV pela Rede Globo, relaciona sua obra e o passado do país com a atualidade

Por Thais Lazzeri
Atualizado em 29 jan 2017, 11h30 - Publicado em 29 jan 2017, 11h30

A cadência da prosa do escritor amazonense Milton Hatoum, 64 anos, não sofre, nunca, um mísero descomedimento. Nem para falar sobre o seu primeiro livro adaptado para a TV, Dois Irmãos, que foi ao ar este janeiro pela Rede Globo com picos de 22 pontos no Ibope, nem da ditadura que destruiu a sua Manaus da infância nem para fazer críticas contundentes ao atual governo — e ao anterior.

Hatoum diz que aprendeu com a floresta a dar tempo para saborear as coisas. O tempo também diz muito sobre o Hatoum romancista, que lançou o primeiro livro aos 37 anos e o segundo — Dois Irmãos, no caso —, onze anos depois. Ao todo, publicou quatro romances — três agraciados com um Jabuti — e uma obra de crônicas. Entre seus livros, dispostos em uma estante (em formato de “u”) que acompanha toda a sala, fotos e miniaturas dos motores da Amazônia, como os barcos a motor são chamados, Hatoum prepara sua próxima obra, em dois volumes, que já consumiu seis anos de trabalho. “Não sei quando vou terminar nem se vou terminar a tempo. Mas não me preocupo com isso.”

Como é a sensação de ter um livro adaptado em série? É muito estranho, até me assustou um pouco o alcance dessa série. O Dois Irmãos sempre foi meu livro mais lido, mas não foi um best-seller instantâneo. Ele teve uma longa história. Primeiro, conquistou leitores que gostam de literatura. Depois, entrou em escolas e universidades. Antes de começar a minissérie ele já tinha 40 reimpressões, quase 170.000 exemplares, que é um número muito significativo. Eu mesmo não sei explicar porque tanta gente se interessou. Não é falsa modéstia nem vaidade escondida. A natureza da Amazônia tem um poder sobre quem nasce e cresce ao lado da floresta, daqueles rios. A natureza inibe a sua vaidade, a sua prepotência… A vaidade fica uma coisa vazia e volta ao seu étimo latino: vazio. Você é tão pequeno diante da natureza. Os grandes poetas e romancistas brasileiros também me desarmaram e me fizeram mais humilde.

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Quando o senhor foi procurado pela primeira vez? O romance se tornou uma história muito forte e dramática nas palavras da Maria Camargo, que escreveu o roteiro e foi a primeira a demonstrar interesse em adaptar o livro, em 2003. Eu não imaginava ter uma obra adaptada, mas, enfim, concordamos. Em 2008, o diretor Luiz Fernando Carvalho se interessou e retomamos a conversa. Aí foi uma longa história dentro da Globo. Imagino que seja em razão do livro não ser um best-seller. Embora tenha muitos leitores, não é um livro comercial. É um romance que trabalha com saltos temporais, com um narrador central e outras vozes. É uma leitura que pode confundir um leitor não-acostumado, porque exige concentração como qualquer outra leitura.

“A natureza da Amazônia tem um poder sobre quem nasce e cresce ao lado da floresta, daqueles rios. A natureza inibe a sua vaidade, a sua prepotência…”

Milton Hatoum

 

O lado humano do romance ecoa em 2017? O romance é um drama familiar muito forte, que termina no trágico, e ele tem como pano de fundo a ditadura. Por isso ela ecoa no presente, é uma radiografia das relações humanas, um mergulho, uma sondagem, que é a base do romance. Um dos sofrimentos do pai dos gêmeos é ver a família e a cidade serem destruídas, uma espécie de despedida desse mundo. Manaus é uma metáfora para muitas cidades brasileiras arrasadas durante a ditadura. O romance, enquanto gênero, tem muito a ver com a passagem do tempo. O poeta Manuel Bandeira dizia: o passado só interessa quando repercute no presente, quando agita as águas do presente. O passado é um problema, não é um tempo pacificado, conformado com ele mesmo. A literatura é esse álbum de família que começa a se mover e se agitar de forma inquieta.

Diferentemente do romance, a minissérie ecoa, com força, a ditadura. Como o senhor avalia essa alteração? O Luiz Fernando ampliou o quadro histórico da ditadura, que no romance é simbolizado pelo assassinato do professor e poeta Laval pelos militares – ele é arrastado, é uma cena bem lenta. O diretor incluiu canções de protesto, como a de Geraldo Vandré, discursos e passeatas e fez uma fusão de imagens atuais com as de arquivo, causando um belo efeito visual. Aparece uma passeata em preto e branco e então os estudantes empunham cartazes do professor Laval, como se 1970 dialogasse com o nosso tempo.

O Luiz Fernando diz que a matança nos presídios do Norte e Nordeste influenciou o fim da montagem. Na verdade, toda essa barbárie começou lá atrás. Isso existe desde sempre, a guerra de Canudos foi isso. É o que Euclides da Cunha escreve em Os Sertões: é uma guerra de jagunço contra jagunço, de pobre contra pobre. E lá no presídio de Manaus, como mostram as reportagens, apenas uma minoria é perigosa. Havia presos que estavam esperando julgamento. Essa é uma cena de um outro livro meu, o Cinzas do Norte. Um personagem (Macau) é encarcerado nessa cadeia antiga, histórica, localizada na Avenida 7 de Setembro. Ele fica à espera de um julgamento que não acontece.

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“O romance é um drama familiar muito forte, que termina no trágico, e ele tem como pano de fundo a ditadura. Por isso ela ecoa no presente, é uma radiografia das relações humanas”

Milton Hatoum

O então secretário nacional da Juventude Bruno Júlio (PMDB), do governo Temer (PMDB), disse em entrevista que “tinha era que matar mais”. Declarações como essa chancelam atitudes preconceituosas e incitam à violência?  A declaração foi criminosa, é inaceitável. Porque isso significa o fim do estado de direito e a exaltação do estado de exceção. Para mudar uma sociedade você precisa investir em cidadania, não em presídios. Como você pode perceber, os paralelismos com a década de 70 não são poucos. Ele ainda disse “Nisso sou meio coxinha”. Ele não é meio coxinha, ele é plenamente fascista ao fazer essa declaração. Eu tenho amigos que são supostamente coxinhas, e eles jamais falariam isso. Jamais, nem brincando. Porque o que esse secretário quer é o extermínio, uma condenação geral para quem está na cadeia. Um assassino deve ser julgado e condenado, pronto. Não há pena de morte no Brasil. Isso demonstra a ignorância e a estupidez dessa liderança jovem política. O PMDB deveria expulsá-lo do partido.

Qual a importância de Manaus ser o centro de uma minissérie? Essa é uma das virtudes da minissérie, a representatividade. A Amazônia é muito celebrada e discutida no mundo todo, mas é também muito desconhecida. Euclides da Cunha tem uma frase muito sábia sobre a região amazônica. Ele viajou para lá no fim de 1904 e no ano seguinte subiu o rio Purus até a nascente. Ele disse “A Amazônia é um infinito que deve ser dosado paulatinamente, pouco a pouco”.  Ela é tão grande, de uma dimensão ciclópica, que para conhecê-la um pouco é preciso se aprofundar numa determinada questão. Esse microcosmo já é um mundo de grande complexidade antropológica, geográfica, histórica. É a primeira vez que vejo Manaus entrar na tela de uma forma tão convincente. A escolha das personagens também foi fundamental. As personagens índias eram atrizes índias, e não brancas.  Os rituais da Domingas (empregada da casa) eram feitos na língua dela, mostrando a herança cultural dela. O filho de Domingas, um mestiço, é o porta-voz da memória da tribo, uma metonímia do Brasil.

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Como o senhor avalia o trato aos indígenas pelos governos Dilma (PT) e Temer (PMDB)? A questão indígena e rural foram tratadas de forma desastrosa no governo Dilma, e o atual consegue ser ainda pior. É um governo muito autoritário, e o ministro da Justiça Alexandre Moraes (ex-secretário de segurança pública do governador de São Paulo Geraldo Alckmin, do PSDB) é totalmente despreparado para o cargo. A política no Brasil está degradada moralmente, os políticos romperam com o povo. E isso é muito grave porque dá margem ao surgimento de aventureiros, os não políticos, como (João) Doria (prefeito de São Paulo pelo PSDB) e Donald Trump (republicano eleito presidente dos Estados Unidos). Dá margem a aventuras perigosas, do tipo Bolsonaro (Jair, deputado). O não-politico só representa, vamos dizer, o lado pragmático, do mercado. Não tem uma sensibilidade para tratar de questões coletivas. Essa miséria política é resultado da lacuna de vinte anos de ditadura, pela falta de discussão, de discernimento, de debate e de liberdade política.

O escritor Milton Hatoum

Ano passado, secundaristas ocuparam escolas em vários cantos do país como protesto da reforma no currículo do Ensino Médio imposta pelo ministério da Educação. Uma das mudanças na grade seria o fim de aulas de artes e filosofia. Faz sentido?  Suprimir as artes é um crime. Isso não existe em nenhum país civilizado. Os grandes filósofos falavam sobre isso: a arte é uma grande aventura da imaginação, é possibilidade de você se libertar de todos os fantasmas, de conviver com o outro, de se colocar no lugar do outro, de imaginar outros mundos, de sair de si mesmo. Como tudo nesse governo, não existe um projeto claro para a educação. Os ministros são todos improvisados – salvo o (economista) Henrique Meirelles. O ministro (da Educação, Mendonça Filho) não é um educador, não conhece o sistema educacional brasileiro. O anterior (Aloizio Mercadante, do PT) também não era. Entre Janine Ribeiro e Fernando Haddad (ambos ex-ministros da educação com formação na área) e Mendonça há um grande abismo.

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O senhor já disse que os seus romances levam anos para serem escritos. É preciosismo? Terminei meu primeiro livro aos 35 anos e só publicado em 1989. Quando saiu o Dois Irmãos, eu tinha 48. Escrevi o livro em três anos, mas demorei muito pensando nele, como pensei em todos. A trama vinha, passava pela minha cabeça e latejava. Com o Cinzas do Norte foi ainda mais longo. Comecei a escrever na década de 80. Quando apresentei o texto para um amigo argentino, já falecido, ele disse ‘isso é crônica, não romance’. Queimei todas as páginas. As questões ficaram latentes e só retomei 22 anos depois.

Dar tempo para as coisas é um aprendizado da Amazônia?  O tempo cronológico não ditava o nosso dia a dia. Havia, claro, a rotina, a escola, mas não a pressa desenfreada. Para a minha geração, Manaus era um pequeno paraíso, que foi perdido. A vida da casa, da escola e da cidade tinha uma continuidade, não era segregada como hoje. Olha… de repente falei uma coisa que gostei. Essa harmonia do mundo urbano com a natureza foi determinante para a minha infância, e a escola pública foi decisiva para a minha carreira de escritor. Toda pirâmide social estava representada numa sala de aula. Isso é democracia. Assistindo a um dos capítulos, me emocionei ao lembrar de um amigo de infância, um Nael de Manaus, filho de uma lavadeira, que tinha uma vida digna. Era um aluno brilhante. Eu frequentei a palafita onde ele morava com a mãe e os irmãos. O Nael, esse curumim de Dois Irmãos, é fruto dessa convivência e observação. Não teria escrito Dois Irmãos sem a experiência da escola pública.

O escritor Milton Hatoum em sua casa, na zona oeste de S‹ão Paulo - 25/01/2017

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