Mestres do algoritmo: computadores vão tomar lugar de artistas?
O uso da inteligência artificial para criar obras digitais milionárias traz uma especulação digna de ficção científica
Quando a paulista Monica Rizzolli iniciou a carreira artística, em 2008, a tela e o pincel eram seus melhores amigos. Quatro anos depois, ela embarcou em uma jornada autodidata na programação de computadores — atividade que muitos veriam como o extremo oposto da liberdade criativa. Pois foi aí que Monica, de 39 anos, se encontrou. “A programação faz com que as coisas se repitam, mas de maneiras diferentes. Eu me apaixonei pela possibilidade de trazer essa repetição irregular para meu desenho”, diz ela. Agora, essa divagante paixão acaba de se reverter em fortuna bem concreta. A brasileira é a criadora de Fragmentos de um Campo Infinito, série de 1 024 pinturas florais que arrecadou mais de 25 milhões de reais no início de setembro. Seu feito atesta a altíssima fervura do mercado de NFTs — obras digitais portadoras de um código capaz de lhes conferir o selo de “únicas”. Mas não só: chama atenção que os trabalhos supervalorizados não foram concebidos pela artista, e sim por algoritmos programados por ela. Chegou o dia, enfim, em que a pintura ousa desbravar um território antes só possível na ficção científica: as mãos humanas dão lugar às pinceladas da inteligência artificial.
A criatividade é a última fronteira entre máquinas e humanos, apontou um estudo da Universidade de Oxford que colocava ocupações que lidam com a subjetividade em uma zona de risco reduzido de substituição pela tecnologia. Mas a popularização de uma arte criada por algoritmos parece apontar para um futuro em que tal metamorfose não será assim tão improvável — ainda que a revolução não seja movida por robôs transmutados em pintores, mas programas de computador que copiam e se antecipam ao comportamento das pessoas reais.
As obras de Monica são parte de um fenômeno maior de valorização da arte feita por algoritmos. Um dos vetores da tendência, a plataforma Art Blocks tem atraído colecionadores dispostos a investir muita grana na chamada “arte gerativa”. Só em agosto, o site registrou mais de 50 000 transações que movimentaram o equivalente a 600 milhões de dólares em criptomoedas. No atual estágio da inteligência artificial, o empurrão humano ainda é fundamental não só como grife, mas para escrever o código que rege o algoritmo e traçar a ideia visual da obra. “Hoje, o valor ainda depende muito do criador, mas no futuro haverá uma mistura entre o valor artístico e o valor do código de programação”, prevê Victor Armellini, sócio da NFTrend, que considera que a maior falha das máquinas — por enquanto — é sua incapacidade de discernir o valor artístico das coisas.
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Embora as engenhocas tecnológicas não roubem o emprego dos artistas, os programadores já entraram na disputa pelo mercado. Formado em computação, o americano Tyler Hobbs é um dos nomes fortes do ramo. Sua coleção mais famosa, Fidenza, brinca com formas e cores em 999 obras lançadas em junho, e vendidas inicialmente por cerca de 400 dólares cada uma. Meses depois, o valor delas explodiu, alcançando cifras milionárias. “Quero encontrar novas maneiras de fundir profundamente a mão com o algoritmo”, já proclamou Hobbs. Na contramão dele, Monica Rizzolli foi da arte tradicional à programação. Para transformar as flores que retrata em números, ela estudou botânica e passou dois meses programando o algoritmo. “É como se jogasse um dado e a combinação dos lançamentos definisse a estação, as cores, a quantidade de pétalas e cada detalhe da obra.”
Uma amostra do virtuosismo que os algoritmos-pintores podem atingir foi seu recente uso para reproduzir o modo de pintar do mestre Rembrandt, na Holanda. Nas obras de algoritmos à venda on-line, a coisa é mais prosaica: o comprador seleciona uma série e adquire um exemplar ainda inexistente, gerado na hora pelo computador. Aos avessos à surpresa, também circulam obras já concluídas. A recordista de valor até agora, vendida por quase 30 milhões de reais, é Ringers #879, do canadense Dmitri Cherniak, que retrata uma das 1 000 formas de enrolar uma corda. Fazem sucesso, ainda, os simpáticos macacos da série Bored Ape Yacht Club, que muda os elementos de sua composição a cada nova imagem e ganhou até leilão na tradicional Sotheby’s. Prepare a carteira: a arte do futuro chegou.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757
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